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Tapinha de amor?

É preciso rejeitar a violência contra a mulher em piadas e músicas

Por Walcyr Carrasco
Atualizado em 13 nov 2019, 18h54 - Publicado em 18 out 2019, 06h00

Recebi um telefonema. Um amigo na polícia. A mulher o havia denunciado por agressão. Assustei-me. Como alguém com formação universitária, esclarecido, era capaz de bater na mulher? Bem, ela recorreu à Lei Maria da Penha. O processo seguiu, e não sei como ficou, pois me afastei dele. Pes­soal­men­te, ele se defendeu dizendo que “ela o enlouquecia”. Achava normal ter explo­dido. Apesar de todas as conquistas, a violência contra a mulher está presente em letras de música, no vocabulário, em condutas sociais. Mais que isso, é consentida. Ainda ecoam os versos de Mulher de Malandro, por Francisco Alves, em 1931: “Carinhosa de verdade / Ela vive com tanto prazer / Quanto mais apanha / A ele tem amizade”. Ou outra, de 1930, cujo título diz tudo: Dá Nela. A maneira de falar e as piadas expres­sam o modo de pensar da sociedade. Também estimulam a continuidade desse comportamento. Quantas vezes já ouvi, em tom de brincadeira: “Ela gosta de apanhar”. As pessoas riem. Como se bater em mulher fosse algo divertido, de que “ela gosta”. Ou também riem quando um homem diz: “Eu não sei por que estou batendo, mas ela sabe por que está apanhando”.

A violência contra a mulher seguiu presente nas músicas. São tantas que não dá para enumerar aqui. Entre Tapas e Beijos, gravada por Leandro e Leonardo em 1989, foi um hit. Anos depois, McNal­dinho & McBeth lançaram Um Tapinha Não Dói. Com os versos: “Dói, um tapinha não dói / Um tapinha não dói”. A letra ficaria esquecida em 2001 se a frase não tivesse se incorporado ao vocabulário. Homens dizem livremente: “Tapinha de amor não dói”. Ninguém está perguntando o que a mulher acha. Comportamentos agressivos são atualizados por meio de uma espécie de bom humor. Por exemplo: é comum, em festas de peão de boiadeiro, os homens laçarem a mulher. Assim mesmo, jogam um laço. Isso é feito na animação de uma festa, como brincadeira. Na verdade, é um ritual de dominação. Depois do laço, se eles ficarem juntos… vem o quê?

“Já ouvi, em tom de brincadeira: ‘Ela gosta de apanhar’. As pessoas riem. Como se fosse divertido”

Há quem tente lutar. Elza Soares, em 2015, lançou o álbum A Mulher do Fim do Mundo, em que avisava: “Eu vou ligar pro 180 / Vou entregar teu nome” — e dava o número de telefone da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher. Músicas de Chico Buarque e Caetano Veloso também empoderam a mulher. Mas o que se fala nas ruas real­men­te conta. Já ouvi diversas vezes, até recentemente, o velho ditado: “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Como não? Se há agressão, por que não intervir?

A gente vive uma espécie de violência consentida contra a mulher. Isso inclui o sexo. O homem sempre acha que a mulher tem a obrigação de ceder. Senão, é no truque ou na força. Como na música Só Surubinha de Leve, de MC Diguinho, de 2018. Recente, não é? Na letra, o homem embebeda uma mulher, faz sexo e depois a abandona na rua!

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Eu sei que sou chato. Aprendi a não rir de certas “piadas”. A não querer certas músicas. E a ter uma atitude firme quando alguém faz uma “brincadeira”. Sinto que é preciso ser assim. Quem não a rejeita se torna cúmplice da violência.

Publicado em VEJA de 23 de outubro de 2019, edição nº 2657

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