Um dos músicos brasileiros mais conhecidos no mundo, o pianista Sérgio Mendes credita parte de seu sucesso aos encontros aleatórios que teve em sua vida. Aos 80 anos de idade completados em fevereiro, e vivendo há mais de 50 anos nos Estados Unidos, ele usa a palavra em inglês “serendipity”, sem tradução em português, que significa algo com “feliz acaso”, como definição para as suas impressionantes parcerias que vão desde Frank Sinatra até recentemente a Will.i.am, do Black Eyed Peas, e John Legend.
Neste sábado, 24, estreia na HBO o documentário Sérgio Mendes no Tom da Alegria, dirigido por John Scheinfeld, que conta com riqueza de detalhes a longeva carreira do pianista. Entrevistas com pessoas como Herb Alpert, Carlinhos Brown, Harrison Ford, Lani Hall (vocalista da banda Brasil ’66), Quincy Jones, John Legend, Gracinha Leporace (líder do Brasil ‘66 e esposa de Mendes), Jerry Moss, Pelé, Carlos Saldanha (diretor do filme Rio, indicado ao Oscar) e Will.i.am, trazem visões únicas sobre Mendes e sua contribuição musical.
Sérgio Mendes conversou com VEJA por videoconferência de sua casa em Los Angeles e relembrou as histórias de sua vida.
A bossa nova ainda é o estilo musical que melhor representa o Brasil no exterior? Chega de Saudade é tão atual hoje quanto era na época do lançamento. Ela é encantadora, mágica, universal. Tom Jobim, meu querido amigo e mestre, deixou uma obra incrível. Garota de Ipanema foi uma onda de alegria no mundo. E são músicas de 50 anos atrás. Eu acho que sim, a bossa nova é imensa.
O senhor se mudou para os Estados Unidos em 1964, pouco depois do golpe militar. O que motivou a sua mudança? Meu filho Rodrigo nasceu poucos dias depois do golpe, em 6 de abril de 1964. E, para comemorar, eu mandei um telegrama para um querido amigo e um grande pintor, Wesley Duke Lee dizendo: “Rodriguinho Barra Limpa, o primeiro realista mágico de Niterói. Avisa ao Tio Lee que a ordem do dia é fralda larga e leite morno”. No dia seguinte, os caras vieram na minha casa e me levaram para um depoimento em Niterói. Eles queriam saber que história era aquela de “realismo mágico” e “ordem do dia”. Eu disse que não era nada disso. Tive que ir no hospital mostrar meu filho numa incubadeira para provar que eu estava falando a verdade. Enquanto isso, os caras de São Paulo foram ao ateliê do Wesley, na Rua Augusta. Quando chegaram lá, viram um busto do pai dele, que era a cara do Lenin. Os caras disseram: “Pronto! Achamos eles”. Imagine uma coisa mais surrealista do que isso? Eu falei: quer saber de uma coisa, vou me embora para os Estados Unidos.
O senhor vive há mais de 50 anos nos Estados Unidos. Como brasileiro vivendo no exterior, como observa as mudanças no país desde então? Eu vejo com muita tristeza. É só isso. Muita tristeza e desencanto. É uma pena que tantas pessoas estejam morrendo de Covid. Uma coisa horrível. Falta cuidado, falta tudo. Eu adoro o Brasil. Aqui melhorou porque o Trump, que era um horror, finalmente saiu. Hoje eu tenho os dois passaportes. O americano e o brasileiro. E eu votei pela primeira vez nos Estados Unidos no ano passado, votei no Biden. As coisas aqui estão melhorando. Já tomei as duas doses da vacina. Queria que todo mundo no Brasil tomasse a sua dose também. Por aqui, já tenho um show marcado para o dia 8 de agosto, no Hollywood Bowl.
Algum novo gênero musical brasileiro, tal como a bossa nova, poderia ter chances de fazer tanto sucesso no exterior hoje? Eu acho que tudo tem chance, mas não sou profeta. Depende da maneira como esse ritmo for apresentado. Acho que o timing é muito importante. Mas, mais importante ainda é ter uma bela melodia. Sabe? Aquela que você vai dormir, sonhar e acordar com ela. Temos grandes músicos no Brasil, fantásticos compositores. A música brasileira está sempre inovando.
O senhor escuta o funk e o sertanejo feitos no Brasil? Você pode gostar de uma coisa que eu, talvez, não goste. Eu gosto, por exemplo, de funk e de rap. Gosto também de música clássica e música tradicional japonesa. É importante as pessoas terem a liberdade de dizer o que gostam e o que não gostam. Mas não pode ter preconceito. Todo mundo tem o direito de se expressar da maneira como preferir.
O que é preciso para vencer no dificílimo mercado da música americana? Você tem que acreditar no que faz. Tem que abraçar o sonho e ir em frente. Ter perseverança é muito importante.
O documentário sobre sua vida No Tom da Alegria, da HBO, traz uma entrevista com Harrison Ford relembrando da época em que ele trabalhou para o senhor como carpinteiro, antes de ele ser famoso — e o senhor já era uma estrela nos Estados Unidos. O que lembra desse dia? Foi inusitado. Eu estava procurando um carpinteiro e perguntei para um amigo se ele conhecia alguém. Ele só me disse que conhecia “um cara que estava começando”. O Harrison foi lá em casa e eu adorei ele imediatamente. Ele chegou com um chapéu, camisa aberta e cabelão. Conversamos e eu falei: “já está contratado”. Anos depois, quando ele já estava famoso, ele me disse que não sabia nada sobre como construir um estúdio e que foi a uma biblioteca pegar todos os livros sobre o assunto que achou. O estúdio ficou lindo. Ele era de uma habilidade manual muito grande.
Em 1994, o estúdio foi destruído em um terremoto. Você contrataria o Harrison Ford para reconstruí-lo? Agora eu não tenho nem dinheiro para pagar o cachê dele (risos). Aquele terremoto foi um susto danado. O estúdio funcionou até 1994 e fiz vários discos lá. Hoje, eu adoro sair de casa para ir gravar em outros estúdios. No fim das contas, era uma mão de obra danada ter um estúdio em casa. Era um entra e sai de caminhão. Uma bagunça. Agora eu vou para um estúdio, gravo e volto para casa depois.
Nos anos 1960, o senhor gravou uma versão de Fool On The Hill, dos Beatles, que tocou mais do que a música original. A música fez tanto sucesso que Paul McCartney lhe mandou uma carta elogiando-a. O que dizia a carta? O Paul dizia na carta que aquela foi a versão preferida da música dele. A melodia é fantástica, você não a esquece. Você vai dormir e ela fica na sua cabeça. Mas ele não disse que a minha versão é melhor do que a dele. Naquela época, eu tive uma ideia de arranjo para ela, transformando-a em um samba 3 por 4, uma coisa nova para a época, mudamos a levada um pouco do samba. Foi uma bela experiência.
Uma história pouco explorada no documentário foi o encontro que o senhor teve com Elvis Presley, em Las Vegas. Como foi esse encontro? Eu fiz uma turnê em Las Vegas e, num belo dia, o Elvis surge no meu camarim. Ele veio me dizer que adorou o meu show. Tiramos até uma foto. Infelizmente eu não me lembro do que conversamos. Mas foi incrível. Imagine, o Elvis ir no seu camarim? Eu fiquei: Uau! Mas nunca gravei com ele, infelizmente.
Por outro lado, o senhor ficou bastante amigo do Elton John. Como o conheceu? Elton é um amigo querido. A primeira vez que eu fui tocar na Europa, ainda nos anos 1960, em Paris, no Théâtre des Champs-Élysées, eu precisava de um cara ou conjunto para abrir o meu show. O empresário da minha gravadora na Europa era inglês e mandou trazer um trio da Inglaterra. Era o Elton John bem no início da carreira. Quando o show de abertura dele terminou, ou ouvi uma gritaria e o Elton entrou no meu camarim chorando e pedindo desculpas. Os franceses haviam vaiado ele. Imagine, ninguém sabia quem ele era e ele estava em um show de bossa nova. Deu nisso. Eu disse para ele deixar isso para lá e que estava tudo bem. No dia seguinte eu liguei para a Inglaterra para falar com o Gilberto Gil, que estava exilado. Disse que precisava de um brasileiro para abrir os meus shows. O Gil pegou o violão dele e no dia seguinte estava em Paris. Mas o Elton John é uma pessoa maravilhosa. Ficamos amigos e nos encontramos várias vezes. Numa delas, estávamos eu, Pelé, Elton e o Mick Jagger num jogo de futebol do Cosmos, nos Estados Unidos.
Por falar em Pelé, o senhor gravou um disco com músicas dele, Meu Mundo é Uma Bola. Como compositor, o Pelé é tão genial como jogador? Mas que pergunta, hein? (risos). Meu encontro com o Pelé é muito bonito. Ele é uma figura fantástica. A música dele tem aquela inocência que é a cara dele. No meu coração, foi uma maravilha ter cantando e ser amigo dele.