Nos versos iniciais de Arquitetura Penal, o poeta Charles Simic escreve: “Escola, prisão, orfanato público / Percorri seus corredores cinzentos / De pé nos cantos mais escuros / a cara contra a parede”. A evocação memorialística e sombria chega ao leitor da antologia Meu Anjo da Guarda Tem Medo do Escuro, recém-publicada no Brasil, em linguagem ao mesmo tempo direta e serena. O tom descritivo e resignado se confirma pela terceira estrofe, na qual as “paredes fendidas, descascadas” e as “grades em todas as janelas” terminam de compor o cenário físico “para o menino na solitária”. O cinza dos corredores, os cantos escuros, o cenário desolador, no entanto, abrigam algo inquietante, estranho, que rompe a regularidade de um mal banal: afinal, é “naquele cômodo com seus poentes vermelhos” que a própria eternidade se poria a falar para uma audiência de “corações de pedra”, como se lê no final do poema.
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Essas imagens poderosas condensam a imaginativa e cativante arquitetura poética de Charles Simic. Nascido em Belgrado, na Sérvia (então parte da antiga Iugoslávia), em 1938, Simic cresceu sob os bombardeios alemães, a ocupação nazista, mais bombardeios (agora dos Aliados) e a rota de fuga para os Estados Unidos — com uma passagem com a mãe por uma prisão soviética e um período em Paris. Ele chegou finalmente ao Novo Mundo em 1954, e já em 1959 aparecem seus primeiros poemas. Desde 1967, com a publicação do primeiro livro, sua trajetória foi marcada por premiações e distinções como o Pulitzer e a posição de Poeta Laureado da Biblioteca de Washington.
Na celebrada obra deste que é um dos maiores poetas americanos vivos, o leitor encontrará um repertório de imagens desconcertantes, ricamente construídas a partir da realidade mais prosaica. Exemplo lapidar disso é o poema Menino Calado, em que uma criança de macacão azul desbotado surge em uma varanda arruinada de um casarão a roubar “um fio de cabelo / Do deus adormecido”. Um Livro Cheio de Figuras fala, com o surrealismo doce e palpável típico do autor, da cena doméstica em que “o pai estudava teologia por correspondência” e “a mãe tricotava” em meio à delicada explosão criativa de um menino lendo um livro cheio de figuras.
A poesia de Simic jamais poderia ser reduzida a uma fórmula. Não se deve esperar repetição. A surpresa, a invenção, o estranho sempre estão presentes. Pode ser em uma feira, avistando “o cachorro de seis patas” que passa a maior parte do tempo deitado em um canto. Pode ser a cativante imagem de seu pai, “que conferia imortalidade aos garçons”. Pode, ainda, revelar-se em imagens que transcendem o dia a dia para falar do sofrimento existencial em uma chave quase religiosa, como no poema Obscuramente Ocupado: “Senhor dos mutilados, / Os que sangraram e crucificaram / Num porão de algum presídio”. Um sofrimento que, mesmo divino, resulta humanizado por Simic.
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Na excelente seleção de poemas do tradutor Ricardo Rizzo — que assina também um erudito ensaio sobre Simic —, essa rica e sutil variedade poética no trato da experiência humana fica evidente. É possível flagrar o olhar quase infantil que produz imagens como a do título do livro — “Meu anjo da guarda tem medo do escuro” é o primeiro verso de um curto e belo poema em prosa. Sua poesia nos proporciona, por fim, discretos rasgos de erotismo. Os versos de Os Cubos de Gelo Estão em Chamas tocam o leitor como o gelo refresca a mulher que olha pela persiana inclinada na pia da cozinha.
Aos 82 anos, Simic é um monumento inesgotável. Do menino que acompanhava os bombardeios e brincava de metralhadora nos escombros dos Bálcãs ao poeta que transformou em poesia a experiência cotidiana da América na segunda metade do século XX, é sempre a vida que pulsa em suas imagens arrebatadoras.
Publicado em VEJA de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726
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