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Quem manda é você

A presença de produções da Netflix no Oscar consagra a ascensão do streaming rumo ao topo do mercado de entretenimento

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h48 - Publicado em 22 fev 2019, 07h00
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    (//iStock)

    Por uma década, o cineasta Alfonso Cuarón cultivou o desejo de fazer um longa-metragem inspirado em suas reminiscências de infância na Cidade do México nos anos 70. Com suas refinadas imagens em preto e branco, o projeto era grandioso — e talhado, imaginava o diretor do premiado Gravidade (2013), para a tela gigante do cinema. Quando enfim conseguiu realizar Roma, porém, seu criador foi tentado a rever os próprios conceitos. Além dos estúdios tradicionais, um expoente notório do novo mundo do entretenimento digital candidatou-se a abraçar a empreitada. Por 20 milhões de dólares, a Netflix garantiu os direitos de distribuição de Roma — pavimentando, assim, o caminho para vencer ferozes resistências à entrada da empresa no mercado das superproduções do cinema. Sua chegada tem implicações não só comerciais mas existenciais: como uma plataforma de séries e filmes para ver nas comezinhas telas da TV, do tablet ou do celular ousaria competir com a dita grande arte cinematográfica? Pois ousou — e levou a melhor. Neste domingo 24, Roma conquiste ou não as estatuetas principais do Oscar, a Netflix já venceu.

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    (Arte/VEJA)

    As quinze indicações da plataforma — além das dez de Roma, são três para o faroeste The Ballad of Buster Scruggs, dos irmãos Joel e Ethan Coen, uma para A Partida Final e outra para Absorvendo o Tabu, ambos na categoria documentário de curta­-metragem — constituem um triunfo não apenas da Netflix. É a locomotiva (ou melhor: o trem-bala) da história que passa atropelando as forças que dominaram o entretenimento por décadas. O advento dos serviços de vídeo por streaming ou sob demanda abalou, de uma tacada, a lógica das indústrias da TV e do cinema, da produção à veiculação de suas obras, do modo como são consumidas à capacidade de diagnosticar os gostos do público. O streaming, com a Netflix à frente, pôs abaixo antigas convenções da televisão (confira o quadro abaixo), derrubando a ditadura da grade de programação e abrindo espaço à oferta ilimitada de atrações.

    No lado do cinema, seu trunfo não é menos extraordinário: agora, qualquer filme, não só as megaproduções de Hollywood para adolescentes, pode dispor de uma vitrine em escala global. O fator que seduziu Cuarón foi a possibilidade de Roma, uma obra tão intimista, atingir os 139 milhões de assinantes da Netflix ao redor do planeta. O acordo garantiu que seu longa-metragem ganhasse exibição nas salas convencionais antes de chegar ao streaming. Diante dos que ainda teimam em denunciar sua suposta “rendição”, ele resumiu a questão: “Quantos cinemas exibiriam um filme mexicano, em preto e branco, falado em espanhol e mixteco (dialeto indígena) — e sem grandes estrelas?”.

    Nos Estados Unidos, onde a revolução se encontra em estágio mais avançado, as mudanças são avassaladoras. Entre 2017 e 2018, milhões de americanos abandonaram a até então inabalável TV a cabo em favor dos serviços de streaming. Segundo estudo recém-lançado da Nielsen, já são 16 milhões de domicílios sem cabo por lá — ou 14% do total. Enquanto isso, a Netflix dispõe de quase 59 milhões de assinantes. No Brasil, a tendência vai se repetindo. Pesquisa inédita da Kantar Ibope Media revela que o número de pessoas que acessam plataformas de streaming ou serviços sob demanda (como o NOW) sextuplicou, indo de 5% dos espectadores nas principais regiões metropolitanas, em 2014, para 32%, em 2018.

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    É ingênuo supor que o stream­ing vai matar a TV tradicional. A mesma pesquisa do Kantar Ibope Media revela que o poderio dela está longe de ser ameaçado: o brasileiro vê, em média, seis horas e 28 minutos de televisão por dia, contra duas horas e 35 minutos devotados aos serviços de streaming — note bem — em uma semana inteira. Quando se olha com lupa, contudo, verifica-se que a Netflix e afins têm uma avenida desimpedida adiante. Nas classes A e B, em que o acesso às smart TVs e assinaturas desses serviços é mais disseminado, a vantagem dos canais estabelecidos já não é tão significativa, de acordo com outra métrica do Ibope: 51% das pessoas viram programas por streaming ou sob demanda nos últimos trinta dias, contra 83% que prestigiaram a TV aberta. Já a TV paga surge como a maior prejudicada. No Brasil, houve uma queda de 550 000 assinaturas entre 2017 e 2018, segundo a Anatel. Como resposta, canais como HBO e Fox investem em plataformas próprias de streaming. E, para não perderem mais terreno, as operadoras se aliam ao inimigo: Net e Claro acabam de anunciar pacotes em parceria com a Netflix. Empresa que disponibiliza o serviço sob demanda NOW, a Net não descarta transformar sua conhecida ferramenta em uma plataforma independente de TV. “Queremos levar o conteúdo aos clientes de forma mais prática. Se eles buscam isso, cabe a nós atendê-los”, diz o diretor de marketing Márcio Carvalho.

    Roma
    MEMÓRIA – Roma: dez indicações ao Oscar e na casa de 139 milhões de pessoas (Carlos Somonte/.)

    A Netflix não divulga nem confirma seus números — fazendo jus à sua fama de “caixa-preta”. Mas há consenso entre fontes especializadas de que a plataforma soma em torno de 8 milhões de assinantes no país. Um sinal que corrobora aquilo que não se pode aferir nas estatísticas está nos ônibus e metrôs, onde sempre se veem pessoas curtindo filmes e séries no celular. “Até há alguns anos, o único espaço para ver TV era dentro de casa. Agora, acontece em qualquer lugar”, diz Melissa Vogel, CEO da Kantar Ibope. As plataformas de streaming não criaram mas provocaram uma expansão exponencial das “novas telas”. Segundo a Com­score, empresa que mede o fluxo de dados na internet, quase 33 milhões de brasileiros viram atrações na Netflix pelo celular só em dezembro passado. A Globoplay, que vem na segunda posição, alcançou 14 milhões de pessoas.

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    (Arte/VEJA)

    No alto escalão de Hollywood, há uma corrida ao ouro do streaming (confira o quadro abaixo), processo que guarda suas ironias. Steven Spielberg cansou de criticar a presença da Netflix no Oscar. “Os cineas­tas estão vendendo a alma por dinheiro”, disse. Mas o diretor de E.T. não quis ser o único alienígena a ignorar os fatos: produzirá para o Prime Video, da Amazon, uma série sobre o conquistador espanhol Hernán Cortés, com Javier Bardem.

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    As celebridades embarcam nessa porque dá audiência e prestígio, mas também porque a bufunfa envolvida é altíssima. A Netflix é uma máquina insaciável de produção de séries, filmes, reality shows e documentários. No ano passado, previu um investimento de 7 bilhões de dólares em conteúdo original, mas os gastos em cerca de 700 títulos dos mais diversos gêneros encostaram em 13 bilhões de dólares. O trator está longe de desacelerar. Neste ano serão lançados, com orçamentos de 20 milhões a 200 milhões de dólares, noventa filmes originais. Só para efeito de comparação: o gigante Disney, o estúdio mais lucrativo de Hollywood, tem onze títulos anunciados para os cinemas em 2019.

    A gastança levanta em certos segmentos a desconfiança de que, assim como ocorreu com a explosão da internet, no início dos anos 2000, o ­stream­ing vive uma bolha peculiar — estimulada com galhardia pela Netflix. “A bolha ainda está em formação. Em algum momento, com tantas plataformas, a pessoa vai olhar a fatura do cartão de crédito e pensar: por que estou pagando por tudo isso?”, diz Paul C. Hardart, professor de entretenimento e tecnologia na Universidade de Nova York. A suspeita de que esse dia fatalmente chegará é, por paradoxal que pareça, um impulso que leva a Netflix a gastar em ritmo acelerado — até agora, com a aprovação entusiasmada dos investidores em suas ações, apesar de carregar uma dívida estimada em 8,5 bilhões de dólares. De olho na lição de outros gigantes digitais, como Google e Facebook, ela sabe que precisa perenizar sua liderança hoje inconteste para continuar reinando no futuro. Possuir um catálogo próprio imbatível e controlar a cadeia de produção é essencial para atingir esse feito.

    Há quem diga — e a Netflix nitidamente aposta nisso — que a teoria da bolha não teria efeito em um mercado cuja lógica põe em xeque tantas verdades estabelecidas da indústria da TV e do cinema. A diluição dos custos proporcionada pela escala global do streaming, bem como a segurança de que haverá plateias até para produções voltadas para os nichos mais peculiares, favorece a agressiva política de lançamentos da Netflix. Seu chefe criativo, Ted Sarandos, tem vinte times com carta branca para torrar dinheiro nos projetos que quiserem.

    A fome de produzir é a força, mas também o calcanhar de aquiles da Net­flix: com tantos tiros para todos os lados, seu padrão de qualidade nem sempre condiz com a propaganda. Para cada Roma capaz de seduzir a academia do Oscar, há uma enxurrada de séries e filmes irrelevantes chegando ao serviço toda semana, muitas vezes jogados a esmo no catálogo. É uma tática que vai na contramão da estratégia da HBO — que, embora tenha sido destronada do posto de estrela-guia da TV pela Netflix, possui algo que a rival ainda não conseguiu alcançar: fenômenos culturais do porte de Família Soprano ou Game of Thrones. Ou, ainda, da concorrente que hoje se revela mais bem posicionada para espezinhar sua vida: a Amazon, com seu Prime Video. Devagarinho, como quem não quer nada, a potência do varejo on-line vai compondo um catálogo forte de séries e filmes originais, com o selo de qualidade de seu estúdio (leia mais abaixo). Jeff Bezos já confessou o desejo de que sua empresa crie o próximo Game of Thrones. Ao investir 250 milhões de dólares nos direitos para uma série de O Senhor dos Anéis, corre o risco de conseguir.

    Há, por fim, outro belíssimo motivo para a Netflix não diminuir seu ritmo: de todos os lados, existe gente disposta a tirar um naco do stream­ing. “Temos absoluta convicção de que esse não será um jogo de um só ganhador. Haverá múltiplos serviços disputando a atenção de milhões de pessoas pelo mundo que procuram quantidade e variedade. Estamos nos primeiros dias do fenômeno”, disse a VEJA Tim Leslie, VP da Amazon Prime Video International. Canais e grandes estúdios correndo atrás do prejuízo estão de olho na nova seara. A estreia da plataforma da Disney, neste ano, é o lance mais aguardado.

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    The Ballad of Buster Scruggs
    FAROESTE – The Ballad of Buster Scruggs: agora, há lugar para todos os gostos (//Netflix)

    A Netflix enfrenta ainda uma batalha peculiar. Na busca por assinantes em qualquer canto do planeta, a companhia realizou o feito de ser a primeira força do entretenimento genuinamente global. Não só disponibiliza títulos em dezenas de línguas — do Brasil à Coreia do Sul — como investe pesado em produções locais. Isso a expõe a mais um desafio: a necessidade de brigar com competidores regionais. “A Netflix tem de disputar com empresas dos 190 países em que atua”, diz David Lieberman, da The New School, de Nova York. Lieberman cita o caso do Eros Now, plataforma da Índia que ostenta 100 milhões de assinantes, amparada no catálogo robusto de Bollywood. “São empresas que dominam o próprio mercado e entendem os gostos daquele povo.” No caso do Brasil, esse lugar é ocupado pelo Globoplay. Mais que a Amazon ou qualquer outra estrangeira, o filhote no streaming da Globo se revela a maior rival da Netflix por aqui — com a ressalva de que uma fatia crucial de sua audiência vem de conteúdo gratuito, não de assinaturas. “Ainda não somos nem metade do que queremos ser, mas tivemos grande crescimento com séries como The Good Doctor e, agora, o BBB”, diz João Mesquita, CEO do Globoplay.

    As câmeras 24 horas do BBB, forte do serviço da Globo no momento, amparam-se nas transmissões ao vivo. Estas costumavam ser exclusividade da TV convencional. Não mais: a Amazon já entrou nesse filão no exterior. E há intensas movimentações em uma fonte lucrativa da TV ao vivo: a programação esportiva. Desde o início deste ano, a hegemonia dos tradicionais canais de esportes foi posta à prova com a entrada de novos concorrentes, em sua maioria ancorados em dinheiro de fora do Brasil. O Facebook adquiriu os direitos de campeonatos de futebol como a Liga dos Campeões da Europa e a Libertadores. E a plataforma DAZN, que se vende como a “Netflix do esporte” e opera em vários países, acaba de chegar ao Brasil. Ao custo estimado de 44 reais mensais, os usuários poderão assistir à Copa Sul-Americana e aos campeonatos francês e italiano. No disputadíssimo jogo do streaming, o telespectador sai ganhando.

    Com reportagem de Alexandre Salvador


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    Repertório de prestígio

    Beautiful Boy
    LONGA BATALHA – Chalamet e Carell: o vício em estilo impressionista (François Duhamel/.)

    Em campos opostos, um pai e um filho (Steve Carell e Timothée Chalamet) travam uma longa e às vezes torturante batalha contra a dependência química, feita de sucessivas recuperações e recaídas: do elenco ao tratamento quase impressionista da história real de David e Nic Sheff, ambos autores de livros de memórias sobre esse período conturbado, Querido Menino (Beautiful Boy, Estados Unidos, 2018; já em cartaz no país) vem com as características do repertório ainda reduzido, mas muito selecionado, da Amazon Studios. Em contraste com a quantidade e a diversificação da Netflix, cuja meta principal é alimentar sua plataforma com incontáveis títulos exclusivos que atraiam assinantes, esse braço da corporação do bilionário Jeff Bezos sinaliza, já no nome, a ambição de se estabelecer como um estúdio de cinema competitivo. Para tanto, mira antes de mais nada a sofisticação do material e o prestígio da equipe criativa. Vem colhendo resultados expressivos: traz seu selo o polonês Guerra Fria, que concorre a três Oscar — além de filmes festejados como Doentes de Amor, Paterson, Você Nunca Esteve Realmente Aqui e o sul-­coreano A Criada.

    Isabela Boscov

    arte-astros-streaming
    (Arte/VEJA)

    Publicado em VEJA de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623

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