Nascido e criado na Suécia, o cientista Johan Rockström tem uma relação especial com geleiras: como grande parte de seus compatriotas, ele aprendeu na infância que o topo Sul do monte Kebnekaise, coberto por gelo, é o pico mais alto do país – só que isso mudou em 2019, quando o derretimento constante do gelo fez a montanha perder o posto para o seu vizinho do Norte, de rocha maciça. A história é uma das muitas relatadas no documentário Rompendo Barreiras: Nosso Planeta, disponível na Netflix. Parceria com o célebre naturalista sir David Attenborough, a produção se desenrola a partir de um estudo publicado por Johan em 2009, e atualizado em 2015, que determina a existência de nove sistemas que garantem a estabilidade da Terra e, consequentemente, um ambiente viável para a sobrevivência humana no futuro.
Liderada por Johan, a pesquisa – que é usada de base para políticas de desenvolvimento sustentável em todo o mundo, inclusive na ONU – determinou limites de segurança dentro desses sistemas que, caso ultrapassados, podem desencadear mudanças irreversíveis. A produção disseca cada um deles na voz de especialistas e com imagens de tirar o fôlego, levando ao público um conceito científico já muito debatido, mas ainda incompreendido por muitos cidadãos. Em entrevista a VEJA, o cientista fala sobre os limites que já foram ultrapassados por nós, relata preocupação com o desmatamento crescente na Amazônia e aponta responsabilidade internacional na proteção da floresta. Confira trailer e entrevista:
O senhor cita no documentário que nós já rompemos algumas barreiras planetárias. Quais são elas? Nós estamos na zona de perigo em quatro delas: mudança climática, desmatamento, perda de biodiversidade e uso desmedido de nutrientes como fósforo e nitrogênio, que estão presentes em fertilizantes e, em grande quantidade, podem causar zonas mortas no meio-ambiente. Esses quatro explicam por que estamos tendo tantos incêndios florestais, secas, derretimento de geleiras, aumento do nível do mar e ondas de calor em vários lugares do mundo. Quando vamos além dessas barreiras, corremos o risco de disparar ações que tiram o sistema do equilíbrio e ameaçam o futuro da humanidade na Terra.
Até onde podemos ir antes que o equilíbrio se perca de vez? Não há um ponto em que todo o planeta desabe, há vários pontos de virada importantes que podem causar problemas em todos os cantos do mundo. Nós não sabemos exatamente quanto tempo podemos ficar longe da zona segura, nem qual o limite de barreiras quebradas o planeta suporta antes que os danos sejam irreversíveis. Não podemos ir além no aumento de temperatura, nem perder mais espécies, porque tudo isso ameaça a nossa habilidade de ter um ecossistema estável, que é primordial para a produção de alimentos e para a qualidade do ar e da água. E estamos nos movendo na direção errada.
A vegetação é uma dos fatores que mantém o planeta em equilíbrio, mas há um desmatamento cada vez maior da Amazônia, e o governo brasileiro é acusado de enxergar a floresta como um bem econômico, não natural. O que acha disso? Todos deveríamos estar preocupados com o ritmo do desmatamento na Amazônia. É a maior riqueza natural do planeta, além de regular as chuvas na América do Sul e o clima de todo o mundo. É o que chamamos de um bem global. Todos os cidadãos do planeta dependem da estabilidade da Amazônia, então todas as nações que têm um ecossistema tão importante quanto este deveriam preservá-lo. Mas é um desafio na questão econômica, porque há um grande valor agregado em uma floresta.
A comunidade internacional tem algum papel nessa preservação? Ela precisa trabalhar junto com o governo brasileiro para compensar a tremenda contribuição que um país como o Brasil oferece ao mundo ao manter a floresta preservada. Deveria haver uma compensação para a conservação da floresta, não para destruí-la, mas os incentivos econômicos atuais fomentam a exploração e o desmatamento. Estamos lucrando com os benefícios de curto prazo da produção de soja, por exemplo, mas não estamos pagando pelos danos à biodiversidade e ao clima. Se déssemos um valor adequado à floresta, não valeria a pena cortá-la.
O senhor diz no documentário que ainda temos uma janela aberta para salvar o planeta. O que podemos fazer? O primeiro passo é reduzir o uso de combustíveis fósseis e cumprir o acordo de Paris, reduzindo a curva de emissão da queima de óleo, carvão e gás natural nos próximos 30 anos. Para manter o aumento da temperatura abaixo do 1,5 ºC, precisamos reduzir as emissões entre 6% e 7% todos os anos. A segunda coisa é que precisamos parar de destruir a natureza e mantê-la o mais intocável possível. É preciso produzir comida, mas podemos fazer isso de maneira sustentável em plantações que já existem. Você não pode simplesmente cortar florestas para expandir a agricultura.
O senhor cita no documentário a adoção de uma dieta mais natural, e lembra que tem crescido a adoção de estilos de vida mais sustentáveis, mas grandes empresas seguem desmatando e poluindo. Qual a responsabilidade dessas corporações? Ter consciência dos problemas e trazer a discussão para o nosso ciclo social é importante, mas não podemos colocar a responsabilidade sobre os ombros dos cidadãos. Precisamos mudar os hábitos, mas necessitamos também de mudanças sociais gigantescas que são responsabilidade de líderes políticos e de grandes empresários. Estamos falando de cortar o uso de todos os combustíveis fósseis, e isso exige investimento em infraestrutura. É a maior transformação desde a Revolução Industrial, há 150 anos, e isso demanda muito mais que apenas ações individuais. São investimentos gigantescos, que não podem ser feitos por você ou por mim.
O mundo está vivendo uma onda de negacionismo, o que acha das pessoas que dizem que o aquecimento global é uma fraude? Existem pessoas que dizem que a gravidade não existe ou que nosso planeta é o centro do universo. Sempre teremos pessoas que não ouvem ou não se importam com os fatos. Elas são minoria, mas existem. Também há interesses fortes no mundo de hoje. Nós temos a indústria de petróleo, que tem sido muito lenta em reconhecer o desafio. Mas isso está mudando rápido, porque a ciência não é um debate. Temos 100% de certeza de que estamos causando o aquecimento global. Isso é um fato. Não me preocupo com os negacionistas porque não temos tempo para seguir nessa discussão.
Mas e os líderes políticos que dão voz ao negacionismo do clima? Com isso eu me preocupo. Temos líderes de grandes economias, como o Brasil, que foram eleitos democraticamente e que se posicionam contra a ciência. Existem cientistas fantásticos no Brasil alertando sobre o aquecimento global causado pela ação humana e sobre a importância da Amazônia. Mesmo assim, os políticos não estão ouvindo. Isso é irresponsável.