Além dos Beatles, a outra paixão dos moradores de Liverpool é o futebol. O clube que leva o nome da cidade inglesa tem um dos hinos mais bonitos do esporte. “Você nunca andará sozinho”, diz a letra, entoada aos prantos pela torcida. Filho célebre do lugar, Paul McCartney — que, para não desagradar a ninguém, se diz torcedor tanto do Everton quanto do Liverpool (o equivalente a dizer que é fã tanto do Corinthians quanto do Palmeiras) — também nunca andou sozinho em sua carreira musical. Exceto em três ocasiões: em 1970, em 1980 e, finalmente, em 2020. Nesses raros momentos de solidão, ele encontrou a inspiração para compor, tocar e produzir sem a ajuda de ninguém suas músicas mais experimentais e menos comerciais. Em abril de 1970, Paul anunciou sua saída dos Beatles e lançou seu primeiro álbum de inéditas: McCartney. Em 1980, quando sua segunda banda, Wings, também chegava ao fim, ele lançou McCartney II. Agora, em 2020, na quarentena, ele lança McCartney III, seu 18º álbum-solo, gravado em um estúdio caseiro em Sussex, na Inglaterra, no esquema que ele chamou de “rockdown” (mistura de rock com lockdown). O trabalho sai dois anos após seu último disco de inéditas, Egypt Station.
Por ser um artista gregário, sempre teve sua identidade musical atrelada a algum grupo. O lançamento do primeiro McCartney foi uma tentativa de se firmar como músico com vida própria após a separação dos Beatles — e também uma forma de negação ao quarteto de Liverpool. “Fui o sujeito que destruiu os Beatles e o safado que processou seus colegas. Era tão frequente ouvir isso que por anos quase me culpei mesmo”, disse em entrevista recente. Essa postura só começou a mudar a partir dos anos 1980, após a morte de John Lennon e o fim do Wings — formado com sua mulher, Linda McCartney, que morreria de câncer em 1998. A paz com o passado, em definitivo, veio nos últimos anos. Depois da morte de George Harrison, em 2001, McCartney passou a tocar em profusão os clássicos dos Beatles e a carregar com orgulho o legado da banda em shows.
Era o que ele estava prestes a fazer no início deste ano, quando sairia em uma nova turnê mundial. Ao se ver preso dentro de casa (embora acompanhado da família), o artista de 78 anos percebeu que não poderia contar com o apoio de outros músicos. Sem pressões da gravadora ou cobranças dos fãs, McCartney concluiu que a solidão do momento atual se assemelhava àquelas outras duas de 1970 e 1980, épocas em que também acreditava não contar com ninguém além de si mesmo. “Em nenhum instante eu pensei: ‘Estou fazendo um álbum. É melhor eu ficar sério’. Foi mais: ‘Você está em quarentena. Você pode fazer o que quiser’”, disse o compositor, em entrevista ao The New York Times, sobre o processo de composição.
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O resultado são onze faixas que entremeiam rocks crus com baladas românticas. Na instrumental Long Tailed Winter Bird, que abre o álbum, as únicas frases que se escutam são: “Você sente a minha falta? / Você consegue me sentir? / Você confia em mim?”. Na segunda faixa, Find My Way, fica claro que o trabalho não é apenas um apanhado de músicas desconexas gravadas aleatoriamente na pandemia. McCartney quer contar uma história, e nessa música absolutamente cativante e simples nos acordes, ele canta: “Eu achei meu caminho / Eu sei o que há à minha esquerda e à direita / porque nós nunca nos trancamos”. Mas, quando uma das composições exige mais da voz de Paul, percebemos que ele já não é mais o garoto de 27 anos de 1970. Nas singelas Pretty Boys e The Kiss of Venus, seu canto, embora ainda afinado, está mais vacilante, quase como um lamento. O peso do rock n’ roll surge em Lavatory Lil, que fala de Lil, uma garota de que Paul não gosta, e também em Slidin’, com distorções de guitarra e também da voz.
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Para divulgar o disco, McCartney espalhou pelo mundo outdoors com as partituras e as letras de todas as músicas e pediu aos fãs que as interpretassem sem conhecer os arranjos originais. As mais criativas versões estão sendo divulgadas pelo artista. Curiosamente, quando se comparam as interpretações dos fãs com as dele, o resultado é parecido com o que o ex-beatle imaginou. Com tantos anos de estrada, todo mundo já conhece aquela identidade musical. Mesmo sem ninguém por perto, Paul nunca estará só.
Publicado em VEJA de 23 de dezembro de 2020, edição nº 2718
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