Raras vezes um velório atraiu a atenção de tanta gente quanto o de Michael Jackson, realizado em julho de 2009 em Los Angeles. No centro da despedida do ídolo da música estavam seus três filhos, Prince Michael Jackson I, Paris-Michael Katherine Jackson e Prince Michael Jackson II. Diante de celebridades como Smokey Robinson, Stevie Wonder e a ex-namorada de Michael Brooke Shields, e com o caixão de seu pai à vista, Paris — então aos 11 anos — criou coragem e assumiu o microfone. Pela primeira vez, o mundo ouviria a voz daquela menina que, durante toda a infância, viveu em um mundo de fantasia criado pelo astro excêntrico. Amparada pela tia Janet Jackson, ela discursou: “Desde o dia em que eu nasci, meu pai foi o melhor pai que eu poderia imaginar”. Aos 22 anos, Paris agora segue os passos de Michael com o The Soundflowers. A dupla que ela forma com o namorado, Gabriel Glenn, está lançando um promissor EP de estreia.
Não são poucos os percalços e dramas que Paris enfrentou até se lançar como cantora. É extremamente pesada a herança que os filhos de grandes artistas têm de superar — ainda mais se decidem seguir o caminho dos genitores. Só dentro de uma banda, os Beatles, há dois exemplos opostos nessas empreitadas. James McCartney, filho do beatle Paul McCartney, tentou carreira musical, mas nem sequer conseguiu emplacar um hit. Já Zak Starkey, fiho de Ringo Starr, se deu bem: é um requisitado baterista com passagens pelo Oasis e pelo The Who. Óbvio que dificilmente Paris será maior que Michael. Mas sua estreia vem com bons augúrios: além de cantar e compor bem, ela busca seu espaço com humildade e despretensão.
Chegar até aqui com luz própria não é pouco para quem carrega o legado controverso de Michael Jackson. Sob nenhum aspecto sua vida foi normal. Para além do peso da fama do pai, ela foi criada em uma família disfuncional. Desde bebê, Paris e os irmãos eram participantes involuntários das aparições extravagantes de Michael — que cobria o rosto dos filhos com máscaras para fugir dos paparazzi, mas só atiçava a curiosidade quase antropológica pela vida do clã no rancho Neverland. Após a morte dele, Paris foi morar com os avós, fervorosos testemunhas de Jeová. Nessa mesma época, ela começou a namorar meninas, mas a homossexualidade era um tabu dentro de casa. Não demorou para sucumbir ao álcool e às drogas. Teve depressão, se mutilou e, segundo ela mesma, tentou o suicídio várias vezes. Não bastasse o corolário pessoal, o fantasma de Michael voltou a atormentá-la no ano passado, com as graves acusações de pedofilia contra o pai escancaradas no documentário Leaving Neverland, da HBO.
Paris precisa lidar ainda com a mãe, a enfermeira Debbie Rowe, com a qual ela não mantém uma boa relação, e que só foi conhecer aos 13 anos. O irmão Prince Michael I é seu principal confidente. Os dois não são nada semelhantes fisicamente com o pai, o que sempre alimentou especulações sobre a real paternidade. “Sou loira, olhos verdes, bem ariana. Na minha família, chamo a atenção como um dedão machucado. Mas eles nunca deixaram que eu me sentisse excluída”, diz ela na série documental Unfiltered: Paris Jackson & Gabriel Glenn, lançada recentemente na plataforma Facebook Watch. Situação diferente vive o irmão caçula, Prince Michael II, que nasceu de inseminação artificial em uma barriga de aluguel e não faz ideia de quem seja sua mãe — mas é muito parecido fisicamente com o pai.
Hoje, o pior parece ter passado para Paris. Milionária, ela encontrou na música seu porto seguro. “É o caminho para expressar minhas emoções sem me machucar. Sou uma Jackson”, diz ela no documentário. No The Soundflowers, ela usa o pseudônimo PK Dragonfly — “PK” são suas iniciais (Paris Katherine) e “dragonfly” é libélula em inglês, o que para a moça simboliza a transformação. Sabiamente, Paris se afastou do pop feito pelo pai. Dona de uma voz melodiosa, ela investe em um descompromissado indie-folk, com violão e até banjo. Paris e o namorado gostam de se vestir como hippies. Apesar do disfarce, ela não se ilude: “Talvez eu nunca tenha vida pessoal”, já declarou. Neverland pode ser uma maldição, mas deu ao mundo mais um talento da música.
Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697