“Do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam”, teria dito o ainda jovem general Napoleão Bonaparte às suas tropas na campanha para conquistar o Egito e bloquear rotas de comércio inglesas no Mar Vermelho. Não se sabe se a frase é apenas parte da lenda que cerca o imperador da França, mas é certo que ele foi a força motriz da egiptologia, pois, na invasão de 1798, além de soldados, ele trouxe consigo historiadores, botânicos, engenheiros e geógrafos que impulsionaram a arqueologia moderna. Hoje, mais de dois séculos após a incursão napoleônica, a um ano do bicentenário da façanha do lexicógrafo francês Jean-François Champollion, que em 1822 decifrou a milenar escrita egípcia, e a um ano do centenário da descoberta da tumba de Tutancâmon pelo britânico Howard Carter, o mundo se rende novamente às maravilhas do Egito Antigo: os faraós da era de ouro estão de casa nova, o Museu Nacional da Civilização Egípcia, e uma cidade perdida com mais de 3 300 anos de idade acaba de emergir das areias do deserto.
Os artefatos e monumentos da civilização egípcia — que todos os anos atraem milhões de turistas, ansiosos para vê-los de perto — constituem a herança material de uma sociedade cuja cultura moldou a humanidade. Encravado no nordeste da África e cercado por desertos, o Egito deve sua existência ao Nilo, rio de 6 650 quilômetros de extensão que deságua no delta do Mar Mediterrâneo. Às margens dele, floresceram cidades independentes que, com o passar tempo, seriam unificadas sob o poder de uma única “casa grande” — significado original da palavra faraó. Como os antigos escribas recomeçavam a contagem dos anos toda vez que um novo rei assumia, é impossível afirmar o exato ano em que o estado-nação surgiu, mas egiptólogos costumam afirmar que teria sido por volta de 3100 a.C., sob o cetro do rei Menés, o primeiro a ostentar os símbolos do Alto e do Baixo Nilo. Este, porém, não é o período mais chamativo para quem gosta de múmias, sarcófagos e pirâmides — ou seja, a maioria das pessoas.
O interesse está mais voltado para outras épocas, como o Antigo Reino, entre 2600 a.C. e 2500 a.C., quando os reis Khufu, Khafre e Menkaure (mais conhecidos pelos nomes gregos Quéops, Quéfren e Miquerinos) ergueram as três grandes pirâmides cujo formato parece apontar energias aos céus. Já que os faraós eram a autoridade constituída para se comunicar com os deuses, construir mausoléus colossais era uma forma de honrar as divindades, a si mesmos e, segundo eles próprios, também a nação. As pirâmides do planalto de Gizé, perto da atual capital, Cairo, são a prova da capacidade de realização de um povo que, além de dominar a escrita e a agricultura, sabia fazer sofisticados cálculos de engenharia, e tinha uma crença dogmática na vida após a morte.
Os súditos, depois da passagem, até tinham direito a algum processo de embalsamamento para fazer a travessia do vale das sombras, mas somente os faraós recebiam o tratamento digno de um emissário dos deuses. Depois da morte, os órgãos — cérebro e vísceras — eram retirados e separados em receptáculos. O corpo era limpo, drenado, desidratado, estufado com tecido, fechado e besuntado, de forma a estar pronto para o além-vida. As bandagens eram de linho de primeira qualidade, acessível somente às classes abastadas. Junto com o soberano, eram enterrados bens pessoais, armas, tesouros e o que mais ele achasse que viria a precisar quando estivesse na presença dos deuses.
A fé inabalável em tais ritos funerários permitiu que muitos dos mumificados faraós do Novo Reino, que viveram entre 1550 a.C. e 1050 a.C. — portanto, mais de um milênio depois da construção das grandes pirâmides —, chegassem aos nossos dias com o corpo razoavelmente preservado. As múmias de dezoito reis e quatro rainhas, encontradas no Vale dos Reis, a oeste da cidade de Luxor, e que estavam guardadas no Museu Egípcio, no Cairo, desde 1902, foram recentemente transportadas, em desfile com pompa e circunstância, para o novo prédio do Museu Nacional. A sofisticada instalação, fundada em 2017 e aberta ao público no último 3 de abril, terá uma ala exclusiva dedicada à realeza, a ser inaugurada no próximo dia 18. Os soberanos do Novo Reino, se estivessem vivos, ficariam satisfeitos com a deferência prestada a eles: na Parada Dourada dos Faraós, cada invólucro, preenchido com nitrogênio para evitar aceleração na decomposição das múmias, foi conduzido em carros à prova de solavancos, ao som de orquestra filarmônica, presença de celebridades locais, muita luz e brilho.
A impressionante procissão ganhou relevância ainda maior com a presença de Ramsés II, lendária figura que reinou por 67 anos entre 1279 a.C. e 1213 a.C. Guerreiro admirável e realizador de grandes obras, ele pode ter sido o faraó que tentou impedir a fuga dos hebreus, liderada por Moisés, conforme descrito no Velho Testamento. No entanto, o desfile ganharia proporções piramidais se estivessem também presentes as múmias de Aquenáton, que implementou o monoteísmo no Egito com a adoração ao rei-sol Aton, e de sua mulher, Nefertiti, cujo nome é sinônimo de beleza. Ao contrário dos demais soberanos, localizados e exumados no fim do século XIX, a múmia de Aquenáton só seria descoberta em 1907 e demorou quase 100 anos para ser confirmada como sendo mesmo do faraó monoteísta. Já os restos mortais de Nefertiti, até onde se sabe, jamais foram encontrados, e a melhor imagem que se tem dela advém de um busto descoberto em 1912 e que hoje é peça de destaque do Museu Novo, em Berlim. Outra ausência sentida, e talvez a mais relevante, é a do lendário Tutancâmon, cuja tumba foi descoberta em 1922. Sua múmia é mantida preservada em uma câmara especial e dali só deve sair para sua morada definitiva, ainda em construção em Gizé. Até hoje, apesar dos avanços da análise de DNA, pesquisadores buscam a prova definitiva de que o faraó-menino (assim chamado por ter morrido aos 19 anos, por volta de 1325 a.C.) é filho de seu antecessor, Aquenáton.
O que está acima de qualquer discussão é o momento oportuno escolhido para divulgar a nova morada dos faraós. O desfile, aparentemente extemporâneo em plena pandemia, foi, na verdade, a propaganda preliminar de uma extraordinária descoberta da qual as autoridades egípcias já tinham conhecimento desde setembro de 2020, mas que veio à tona somente na semana passada — não por coincidência, logo depois da repercussão internacional da Parada Dourada dos Faraós. Trata-se de uma cidade perdida na qual foram encontrados utensílios domésticos, cerâmicas e restos mortais de egípcios que viveram ali nos anos 1300 a.C., no reinado de Amenófis III, pai do monoteísta Aquenáton. Apelidado de Pompeia do Egito, em referência à cidade italiana paralisada no tempo pelo vulcão Vesúvio, o novo sítio arqueológico, que não fica distante do Vale dos Reis, tem relíquias suficientes para preencher um novo museu: “É a mais importante descoberta desde o túmulo de Tutancâmon”, enfatiza o arqueólogo-chefe da escavação, o egípcio Zahi Hawass. Ainda não foi esclarecido como a localidade ficou fora do mapa por tanto tempo, mas ela desapareceu muito antes de seus descendentes testemunharem a ruína do império, que acabou sucumbindo a invasões estrangeiras, principalmente persas. A estabilidade só seria restabelecida com a chegada de Alexandre Magno em 332 a.C. O grande conquistador macedônio expulsou os persas e devolveu a autonomia ao Egito, sob os auspícios de seu general Ptolomeu, que fundaria uma dinastia de três séculos, tendo Cleópatra VII, a rainha eternizada, como sua maior e derradeira representante. Cleópatra conquistou o coração de dois romanos, Júlio César e Marco Antônio, mas não conseguiu evitar seu próprio fim. “Toda glória é passageira”, talvez dissesse o general americano George Patton, que lutou na II Guerra Mundial, 130 anos depois das Guerras Napoleônicas. A glória realmente é finita. Mas, em contrapartida, não pode ser apagada da história.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734