Nas últimas semanas, a expectativa sobre o destino da série Round 6 no Emmy suscitou reações ambivalentes na Coreia do Sul. No país de origem do fenômeno da Netflix, a imprensa celebra em tom ufanista a façanha da produção: com catorze indicações, inclusive nas categorias principais, Round 6 levou um programa estrangeiro a invadir de forma inédita a maior premiação da TV americana. Os resultados mais importantes serão conhecidos só no próximo dia 12, mas a série garantiu antecipadamente quatro estatuetas em quesitos técnicos, dando à Coreia suas primeiras vitórias no Emmy. Mesmo na hipótese de não levar mais nada, o país já fez história. Os coreanos, contudo, já não se impressionam tanto. Por uma razão simples: da TV ao cinema, passando pelo k-pop de grupos musicais como o BTS, os coreanos já se acostumaram a ver suas produções culturais no topo do mundo. Sean Dulake, ator, produtor e protagonista da novela Dramaworld, uma das produções coreanas mais vistas na América Latina, explicou a VEJA a sensação no país no momento: “Existe uma efervescência. São tempos fantásticos para ser uma pessoa criativa por aqui”.
K-Pop – Manual de Sobrevivência
Os números ilustram o êxito fabuloso da Coreia do Sul na propagação de seu soft power — a capacidade de um país de se impor (e lucrar) com seu entretenimento. A indústria cultural sul-coreana movimentou, só no ano passado, mais de 11,6 bilhões de dólares. Para se ter uma ideia da importância que o setor alcançou, o BTS, banda mais bem-sucedida do país, foi responsável por quase 0,3% do PIB da décima maior economia do planeta. A Netflix já investiu mais de 700 milhões de dólares na produção de conteúdo no país. O governo coreano estima que haja no mundo 100 milhões de fãs autodeclarados da cultura pop local — quase o dobro de sua população. Após ser lembrada por várias gerações apenas pelo conflito armado com seu vizinho do Norte, não é exagero dizer que, na última década, nenhuma outra nação ascendeu tanto no nosso imaginário coletivo quanto a Coreia do Sul.
A história do triunfo dessa nova superpotência cultural não possui catalisador único — e às vezes causa surpresa até para os próprios coreanos. Esse fenômeno tem um nome: Hallyu, termo chinês que significa “onda coreana”. Do hit Gangnam Style, que já completa dez anos, até o estrondoso Round 6, o movimento se tornou um verdadeiro maremoto. A Hallyu é fruto de uma tempestade perfeita que envolve ambição e senso de oportunidade de múltiplos setores da sociedade, com destaque para o papel do Estado no incentivo ao setor. Bonnie Tilland, antropóloga da Universidade Yonsei, atesta: “Sem a supervisão do governo, é improvável que o entretenimento tivesse alcançado o sucesso de hoje”.
Um célebre relatório oficial de 1994 revelava como o tema se convertera em questão nacional, ao apontar que um único arrasa-quarteirão americano — o filme Parque dos Dinossauros, de Steven Spielberg — havia faturado cerca de 850 milhões de dólares em um ano, quase o lucro obtido com a venda no período de 1,5 milhão de carros de uma das maiores montadoras nacionais, a Hyundai. A ideia de que produtos culturais poderiam ser tão rentáveis quanto os industriais passou a ganhar espaço nos círculos de poder do país em um momento sensível de sua economia, na época quase totalmente voltada à exportação de industriais — e de desilusão diante da grande crise financeira da Ásia dos anos 1990.
As agruras econômicas trouxeram um efeito colateral benéfico. “A crise foi traumática para a Coreia, mas serviu de pontapé para a indústria cultural no exterior”, diz CedarBough Saeji, professora da Universidade de Busan. Os primeiros produtos pop coreanos para exportação, as novelas, foram comprados pelos países vizinhos por ser mais baratos que os vindos dos Estados Unidos e outros países, dada a desvalorização brutal sofrida pelo won sul-coreano. E logo caíram no gosto popular. “Em meio ao noticiário terrível sobre desemprego e falências, as únicas histórias felizes eram sobre o sucesso das novelas e grupos de k-pop nos países vizinhos — algo impensável até então”, diz Saeji.
O governo teve peso inicial importante, ao incentivar conglomerados familiares como Hyundai e Samsung a investir. Mas, como lembra Saeji, “não teve absolutamente nenhum papel no processo criativo — que é o que fascina o mundo”. A bem da verdade, a relação entre os órgãos governamentais e a cultura do país nem sempre foi tranquila: houve casos de perseguição e censura, mesmo após a Coreia chegar à plena democracia, no final dos anos 1980. Talvez o exemplo mais notável seja o do diretor Bong Joon-ho, do sucesso Parasita. Devido à postura crítica ao governo da ex-presidente Park Geun-hye, o cineasta foi incluído numa lista negra secreta de artistas, sendo banido de programas de incentivo. Em 2017, Geun-hye sofreu impeachment por corrupção — e três anos depois Bong Joon-ho traria o primeiro Oscar da história da Coreia. Em certa medida, a criatura chamada k-pop se tornou até mais poderosa que as autoridades: o governo vive sob pressão para mudar leis e livrar os astros do BTS do serviço militar.
A expansão do pop made in Korea tem a ver, inclusive, com a geopolítica. Por duas décadas, o mercado chinês foi seu maior consumidor. Isso até 2016, quando o governo sul-coreano fez acordo com os Estados Unidos para instalação de um escudo antimísseis em seu território — o que o governo chinês entendeu como afronta. Como consequência, um banimento sistemático dos produtos culturais coreanos ocorreu no país vizinho. O impacto econômico foi gigantesco, mas não demorou para acontecer uma reconfiguração: os esforços foram redirecionados ao mercado americano.
Não por coincidência, ainda naquele ano o BTS e outros astros do k-pop deslancharam no Ocidente. Inclusive no Brasil, sexto maior mercado para os produtos culturais coreanos — e segundo fora da Ásia. Impressionado pelo sucesso de sua série no Brasil, o astro Sean Dulake enxerga paralelos entre as culturas: “Apesar das diferenças, as duas nações adoram as novelas”. A prova disso está no ar: Uma Advogada Extraordinária, mais recente hit da Netflix no país (e no mundo), é um legítimo k-drama.
A transformação de um país do tamanho de Pernambuco em gigante global da cultura é um caso com que o Brasil e outros países têm a aprender. Como a jornalista coreano-americana Euny Hong relata em The Birth of Korean Cool (“O nascimento da Coreia descolada”, inédito no país), até há não muito tempo a Coreia era tida como “brega”. No livro, a autora fala da juventude no bairro de Gangnam — na época, basicamente um terreno baldio, agora tomado por arranha-céus e boêmia. A área de Seul foi parar na boca de jovens mundialmente com o hit de PSY. “A surpresa foi tão grande para nós quanto para o resto do mundo”, disse a autora. Hoje, ninguém mais se espanta com a força da letra k.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806
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