Há poucas baladas tão bonitas e de tanto sucesso quanto Rocket Man, de 1972, de Elton John e seu parceiro, o letrista Bernie Taupin. É obra-prima de um gênero, as canções do tempo em que o ser humano pisou na Lua pela primeira vez e viu a Terra do espaço. Faz parte dessa restrita galeria Space Oddity, de David Bowie, e aqui no Brasil a linda e esquecida Lunik 9, de Gilberto Gil. Rocket Man — que não por acaso virou título do filme biográfico sobre o compositor e cantor britânico — emociona. “E acho que vai demorar muito, muito tempo / até que a aterrissagem me traga de volta para descobrirem / que não sou o homem que acham que sou em casa”, chora o astronauta. Parece estar claro, ainda que toda interpretação corra o risco de falhar, por leviana: é metáfora da solidão do artista.
A solidão de Elton John, um olhar para sua intimidade, começa a ser revelada, nua e crua, nos próximos dias em um leilão promovido pela Christie’s de Nova York. São mais de 900 objetos, avaliados em pelo menos 10 milhões de dólares, que serão vendidos a partir de 21 de fevereiro. Compunham a decoração de um imenso apartamento em Atlanta, nos Estados Unidos, com mais de 1 200 metros quadrados, quase um museu, e que foi vendido no ano passado por 7 milhões de dólares. Há de tudo: peças de uso pessoal, sinônimo de sua celebrada extravagância, e obras de arte, reflexo do bom olho — e de muito dinheiro, claro. Chama a atenção o par de botas plataforma prateadas, de couro finíssimo, com as iniciais “E” e “J”, usadas nos shows dos anos 1970, cujo valor de largada é de 5 000 dólares. Celebra-se a oferta do piano Yamaha, de 1992, avaliado em pelo menos 30 000 dólares, que estava na sala principal do imóvel americano. Ali ele compunha. Não faltam os óculos de sol que se tornaram marca registrada. Resumo da ópera-rock: é memorabilia que confirma e reconfirma o jeitão espalhafatoso, provocativo e genuinamente kitsch do gênio pop.
Contudo, um passeio pela coleção artística autoriza uma outra conclusão, dada a qualidade — e os tons mais reservados, diga-se — do que ele colecionou. Há pinturas de Andy Warhol e um Banksy para lá de clássico (o desenho de um homem mascarado com flores, o item mais caro, na ordem de 1,5 milhão de dólares), colagens de Damien Hirst e uma vasta galeria de fotografias feitas por Helmut Newton, Robert Mapplethorpe e Richard Avedon. Um retrato em especial — o de uma mulher com chapéu e renda, registro de Irving Penn para uma capa da revista Vogue de 1950, coisa de 100 000 dólares, por baixo — ajuda a iluminar o aspecto mais preto no branco de um artista coloridíssimo do ponto de vista público. “Temos imenso orgulho de apresentar um conjunto refinado de fotografias, obras de arte e figurinos de moda”, diz Tash Perrin, responsável pelo braço da Christie’s nas Américas. “É o testemunho da visão eclética e do talento artístico de um homem.”
O leilão, com dinheiro destinado a benemerência, é também um canto do cisne. Depois de abandonar os palcos, é pouco provável que Elton John volte a gravar em estúdio, com a saúde fragilizada. Fez, portanto, por meio da Christie’s, um testamento em vida. É quase uma cerimônia de adeus de um período fundamental de sua existência, já no tempo da maturidade. O apartamento de Atlanta é lugar de especial afeição para o compositor. Foi ali, no início dos anos 1990, que ele encontrou apoio e consolo para o alcoolismo que o consumia aceleradamente. Tratou-se em um dos centros de recuperação mais conhecidos — e mais caros — dos Estados Unidos, voltou a viver sóbrio e fechou-se no lar transformado em ninho. “A oferta é um retrato de como ele viveu e amou nos últimos trinta anos”, afirma Darius Himes, reputado curador americano. “É como abrir a porta e espreitar dentro de seu mundo.” Com dor, claro. “Elton nunca gostou de se separar das coisas que comprou ou ganhou”, afirma David Furnish, marido e empresário. “Mas sempre se chega a um estágio no qual já não se pode apenas continuar a acumular. Foi uma decisão emotiva.” Aos 76 anos, quis em vida contar sua história. Da letra de Rocket Man: “É solitário lá fora, no espaço / num voo infinito assim”.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876