O lado sombrio de Picasso, o artista que era algoz de suas musas
50 anos após a morte do cubista, legado do pintor se equilibra entre a genialidade artística e os abusos perpetrados contra suas mulheres
No dia 8 de abril de 1973, há exatos 50 anos, Pablo Picasso morria na cidade de Mougins, na França, vítima de um edema pulmonar. Aos 91 anos, o cubista, que revolucionou a forma de pintar a figura humana valendo-se de traços disformes e coloridos, legou ao mundo cerca de 25 000 obras de valor artístico inestimável. Deixou também um rastro de violência e misoginia contra as muitas mulheres de sua vida, cavando para si a imagem de um gênio cruel que hoje habita o imaginário popular — em 2021, por exemplo, um grupo de ativistas fez um “protesto silencioso” no Museu Picasso de Barcelona, onde apareceram com camisetas com dizeres como “Picasso, abusador de mulheres.”
Nos números, o espanhol passa longe de qualquer cancelamento: este ano, mais de 50 exposições foram organizadas entre a Europa e a América do Norte para celebrar a carreira no cinquentenário de sua morte. O pintor também é figura de destaque no mercado da arte: segundo dados da Sotheby’s, entre 1950 e 2021, mais de 1.500 Picassos foram vendidos em leilões nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, fazendo dele o artista mais desejado do mercado. O prestígio também se traduz em cifras milionárias: desde 1999, os preços das obras de Picasso cresceram duas vezes mais rápido do que o mercado de arte do século XX, com quadros chegando à bagatela de 180 milhões de dólares.
Tão inquestionável quanto seu sucesso artístico é o trato impiedoso que relegava às mulheres. Oficialmente, o espanhol se casou duas vezes, com Olga Khokhlova e Jacqueline Roque, mas sua lista de amantes é extensa, incluindo nomes de destaque em suas obras, como Dora Maar e Marie-Therese Walter — esta última, ele conheceu aos 45 anos, quando ela tinha apenas 17. Mulherengo, ele trocava de “amores” de tempos em tempos, e não tinha pudores de conciliar mais de uma — há relatos, inclusive, de que marcava encontros com duas mulheres no mesmo horário em seu ateliê apenas para vê-las brigando por ele.
Françoise Gilot, a única que teve coragem de abandoná-lo, lançou, em 1964, Life with Picasso, um livro de memórias sobre a vida ao lado do artista. O relato retrata com realismo dilacerante a dualidade entre o gênio e o algoz. “Ele tinha uma espécie de complexo de Barba Azul que o fazia querer cortar as cabeças de todas as mulheres que havia colecionado em seu pequeno museu particular”, escreveu na obra, que revela ainda que o pintor a proibiu de ir ao médico durante a gravidez, ameaçou jogá-la no Rio Sena e cortou laços com os filhos quando ela saiu de casa. Com a pressão psicológica, muitas de suas mulheres saíram do relacionamento destruídas: Dora Maar teve um colapso nervoso e recebeu semanas de tratamento com eletrochoque quando Picasso a deixou, e Marie-Thérèse Walter e Jacqueline Roque cometeram suicídio anos após a morte do pintor.
Com a vida pessoal regada à controvérsias e uma importância inestimável para a história da arte, valeria, portanto, o velho mote de separar o artista da obra? No caso de Picasso, a dissociação é complexa — ele próprio chegou a declarar que suas telas são como páginas de seus diários, e ao menos oito mulheres aparecem retratadas, muitas vezes de maneira pouco humanizada, em suas obras. “Ele as submetia à sua sexualidade animal, as domesticava, enfeitiçava, ingeria e esmagava em sua tela. Depois de passar muitas noites extraindo sua essência, uma vez que elas sangrassem até secar, ele as descartaria”, escreveu a neta Mariana Picasso no livro Meu Avô, Pablo Picasso (2001), indicando que o talento andava de mãos dadas com o comportamento errático.