A pobreza na França tem matizes bem diferentes da miséria no Brasil — mas existe. O escritor Édouard Louis levou uma vida muito pobre durante sua infância e adolescência, nos anos 1990 e 2000. Filho de um operário e de uma dona de casa, ele e seus quatro irmãos passaram por grandes privações em Hallencourt, vilarejo com menos de 1 500 moradores no norte do país. Além das necessidades materiais, Louis e sua família sentiam-se humilhados por terem de recorrer aos vizinhos para se alimentar, “pedindo emprestado” um pacote de macarrão ou batatas. Soma-se ao calvário o fato de Louis, desde muito jovem, se reconhecer gay numa sociedade brutalmente machista. É esse contexto carente, violento e ignorante que emerge de Lutas e Metamorfoses de uma Mulher e Quem Matou Meu Pai. O díptico foi escrito para ser lido de uma tacada só, pois se trata de obras complementares. A primeira aborda a relação do autor com sua mãe e a outra, com seu pai. No conjunto, o escritor de 30 anos atinge uma voltagem devastadora que justifica sua fama de garoto prodígio da literatura francesa.
Lutas e metamorfoses de uma mulher
Adepto da chamada autoficção, estilo que rendeu o Nobel do ano passado à sua conterrânea Annie Ernaux, Louis é fiel aos fatos, mas relembra sua história com a maestria que só ótimos escritores dominam. Se em seu primeiro livro, O Fim de Eddy (publicado pela Tusquets em 2018), ele narra como se descobriu e se assumiu homossexual, esses dois relatos breves vão além do relato memorialista: Louis faz arte, expõe pensamentos e conjecturas políticas e sociais, cria tensões, comove e instiga seus leitores. Lê-lo é fundamental para entender a França hoje, sobretudo o descontentamento dos “perdedores da globalização”, a classe baixa trabalhadora que viu empregos diminuírem, salários minguarem e o custo de vida explodir.
Um exemplo de seu realismo desencantado é a fúria contra as políticas liberais do atual presidente da França. “Agosto de 2017 — o governo de Emmanuel Macron tira 5 euros por mês dos mais necessitados, retém 5 euros por mês dos auxílios sociais que permitem aos mais pobres na França encontrar moradia e pagar aluguel. No mesmo dia, ou quase, não importa, anuncia uma redução de impostos para as pessoas mais ricas”, escreve. E conclui, exprimindo as agruras do próprio pai: “Emmanuel Macron tira a comida da sua boca”.
A indignação do autor e de muitos outros franceses tem raízes em motivos reais, e muitas vezes irrompe em violência, como nos protestos dos coletes amarelos, em 2018, e nas manifestações contra a reforma da Previdência do país. Em julho, a mais recente onda de revolta — desencadeada pela morte de um jovem de 17 anos baleado pela polícia — também teve os alvos contumazes: a classe política e as elites dirigentes.
O mal-estar difundido no país permeia seus personagens. No livro sobre a mãe, Louis fala de “uma pessoa que lutava pelo direito de ser mulher”. Aos 20, Monique já tinha dois filhos, nenhuma profissão e um casamento infeliz. Mas, ao menos, obteve a redenção na maturidade. Já o pai — que ele nem nomeia, talvez por mágoa do homem sádico — “não pôde estudar, não pôde viajar, não pôde realizar seus sonhos”. Filho de dois perdedores, Louis é a exceção que ascendeu por meio dos estudos. Mesmo na França arrasada, a vida é capaz de mostrar o caminho.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852
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