Num diálogo do filme Advogado do Diabo (1997), o jovem Kevin Lomax (Keanu Reeves) pergunta a seu chefe, John Milton (Al Pacino): “Por que a lei?”. Milton, que lidera uma poderosa banca de advogados e é ninguém menos do que o próprio Coisa Ruim na Terra, responde: “A lei, meu garoto, nos coloca dentro de tudo. É o melhor passe para os bastidores”. Ainda que distante da produção de Hollywood no tempo e no espaço, nosso Bruxo do Cosme Velho certamente concordaria com o capeta: advogados, desembargadores, juízes e bacharéis dão um molho condimentado à sua obra. Se alguns personagens são estrelas na constelação machadiana, como o advogado Bentinho e o bacharel Brás Cubas, outros nem sequer têm seus nomes citados, mas estão lá para ajudar a sustentar as tramas. É o que mostra com brilho o livro Código de Machado de Assis — Migalhas Jurídicas, de Miguel Matos. Até a eterna dúvida sobre a traição de Capitu, quem diria, ganha novos contornos quando vista à luz das pílulas de direito salpicadas em Dom Casmurro.
Advogado e jornalista, o autor faz um minucioso levantamento dos personagens e passagens jurídicas na escrita de Machado de Assis — dez romances, cinco coletâneas de poemas, mais de 200 contos e cerca de 600 crônicas. Com edição caprichada que inclui quadros explicativos e muitas fotos, o livro tem diagramação que remete a um almanaque. Há ainda centenas de QR codes que direcionam o leitor para reproduções fac-similares dos jornais em que Machado publicou seus textos. As opções interativas dão leveza ao catatau de quase 600 páginas, espertamente dividido como um códex com capítulos, artigos e incisos.
Na introdução, Matos avisa que seu objetivo não é fazer crítica literária ou uma nova abordagem da obra machadiana, mas um apanhado das “migalhas jurídicas” que o autor deixou em sua vida e textos (leia abaixo). Como um dedicado funcionário público no Segundo Reinado e início da República, mesmo sem ter diploma, Machado redigia pareceres jurídicos sobre variados temas. Com sólidos conhecimentos e argumentação impecável, suas avaliações eram corroboradas por juízes e desembargadores.
Já a análise da obra ficcional revela uma tropa de oitenta advogados, 38 bacharéis, 23 desembargadores, dezoito juízes, onze escrivães, dez escreventes, oito estudantes de direito e outros profissionais, como promotores, tabeliães e procuradores. Matos prova que, assim como o diabo do filme, Machado sabia que a lei permeia tudo. Para um autor urbano, a preferência em retratar profissionais do direito é não só compreensível como útil, pois as leis regulam as relações sociais e econômicas: casamentos, heranças, disputas comerciais e políticas.
Só o extensivo levantamento feito por Matos já justifica a importância do livro, que serve de atlas para uma faceta conhecida, mas nunca até então mapeada, de um dos mais importantes escritores do século XIX — “um mestre na periferia do capitalismo”, na definição do crítico Roberto Schwarz. As contextualizações guiam o leitor pelos pitacos jurídicos de Machado. Em suas crônicas, ficamos sabendo suas opiniões muito avançadas, como a defesa do voto feminino e em prol da regulação e liberação dos prostíbulos.
Memórias Póstumas De Brás Cubas
De origem humilde, o escritor não teve oportunidade de cursar a Faculdade de Direito em São Paulo, mas ao longo da vida acompanhou com interesse a vida acadêmica na então província. Machado não só lia os periódicos produzidos sob as arcadas do Largo São Francisco, como comentava obras de alunos e professores. Seu interesse o fez entrar numa disputa entre o senador José Martins da Cruz Jobim e os estudantes. O político tinha atacado a faculdade, seus alunos e professores em discurso. Aos 25 anos, em 1864, o cronista critica o senador e defende a “mocidade de São Paulo”.
O clímax do livro é a interpretação do autor para o maior mistério da literatura brasileira: Capitu, afinal, traiu Bentinho? Matos dá seu veredito de forma perspicaz. Em linguagem jurídica, se poderia dizer que ele usa elementos “fora dos autos” para proferir a sentença, pois chega a ela se valendo de informações de outra obra, A Mão e a Luva: alusões a “embargos de terceiros” (reivindicação legal de propriedade por alguém que não faz parte do processo) presentes nos dois romances em questão sustentam sua conclusão (da qual não se dará spoilers aqui). É um duplo twist carpado interpretativo. Mas, em tempos de direito criativo e neoconstitucionalismo, está valendo.
PENA AFIADA
Visões de Machado de Assis sobre o universo do direito
“Segundo a Constituição, há uma religião do Estado, a católica; mas os outros cultos são tolerados. Ora, se há também um amor ortodoxo, um amor do Estado, há outros amores dissidentes; daí a necessidade de se tolerarem as tais casas e regulá-las. Os escorregões são uma forma de protestantismo.”
Trecho de crônica de 1º/12/1876, na qual defende proposta de lei para regulamentar os prostíbulos no Rio de Janeiro
“Matriculou-se, é verdade, na Faculdade do Recife, creio que em 1855, por morte do padrinho que lhe deixou alguma cousa, mas tal é o escândalo da carreira desse homem que, logo depois de receber o diploma de bacharel, entrou na assembleia provincial. É uma besta; é tão bacharel como eu sou papa.”
Trecho de Quincas Borba, 1891
“Elevemos a mulher ao eleitorado; é mais discreta que o homem, mais zelosa, mais desinteressada. Em vez de conservarmos nessa injusta minoridade, convidemo-la a colaborar com o homem na oficina da política. Que perigo pode vir daí? Que as mulheres uma vez empossadas das urnas, conquistem as câmaras e elejam-se entre si, com exclusão dos homens? Melhor. Elas farão leis brandas e amáveis.”
Trecho de crônica de 16/7/1894, em que comenta sobre a Nova Zelândia, que pioneiramente, em 1893, foi o primeiro país a garantir o sufrágio feminino
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756
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