Um casal americano de classe média embarca na sonhada viagem para a Europa. Ao chegar lá, o esquema “farofa” dos passeios de ônibus dá lugar a uma mordomia: no avião, um ricaço convida a dupla para uma viagem em seu iate. Uma intriga em alto-mar culmina em uma série de assassinatos — e todos viram suspeitos. Se esse filme passasse no cardápio da clássica Sessão da Tarde, um locutor anunciaria os personagens de Adam Sandler e Jennifer Aniston como “o casal que se mete em altas confusões”. Faria todo o sentido. O longa Mistério no Mediterrâneo prova que o universo do streaming agora tem a própria versão do famoso programa global de longas vespertinos do gênero água com açúcar. Esqueça aquelas produções incensadas vindas de países exóticos que fazem a fama da Netflix: o que tem feito sucesso na plataforma são mesmo as comédias fanfarronas e os filmes românticos despretensiosos.
No recém-lançado relatório global da empresa, a notícia de que o ritmo de crescimento de suas assinaturas se reduziu provocou uma queda bilionária no valor da companhia. Mas o dissabor foi compensado em parte pelo desempenho desses novos bastiões do escapismo televisivo. Versão pastelão de Assassinato no Expresso Oriente, de Agatha Christie, Mistério no Mediterrâneo é recordista de audiência: no primeiro mês no ar, em junho, foi visto por 73 milhões de assinantes (confira os quadros). Se arrebanhasse público parecido no cinema, teria bilheteria na casa dos 500 milhões de dólares.
O streaming, curiosamente, veio salvar gêneros que há tempos viviam seu ocaso no cinema. Pouco mais de uma década atrás, os filmes cômicos e românticos deram lugar a franquias como Crepúsculo e aos arrasa-quarteirões de super-heróis. Criou-se então um novo axioma: para alguém sair de casa e comprar um ingresso, o filme precisa ser grandioso — adjetivo que não combina com as caretas frugais de um Adam Sandler. Tanto que a carreira do ator periclitava: em 2013 e 2014, ele liderou a lista da Forbes dos astros de pior custo-benefício para os estúdios de Hollywood. Sandler era um produto em baixa total quando, em 2014, assinou um acordo de 250 milhões de dólares para fazer quatro filmes na Netflix — contrato que foi renovado no ano passado.
As comédias românticas não ficam atrás em matéria de popularidade. O sucesso foi impulsionado pelo gracioso Para Todos os Garotos que Já Amei. O filme de 2018 converteu em estrelas seus adoráveis protagonistas, Lana Condor, de 22 anos, e Noah Centineo, de 23. O carismático Centineo é o primeiro galã projetado pelo universo do streaming. Em menos de um ano, lançou outros dois filmes na Netflix — o principal deles, O Date Perfeito, ostenta 48 milhões de visualizações.
De olho na tendência, a Netflix acelerou a aposta em filmes “mamão com açúcar”. Eles atendem aquele espectador que chega em casa cansado e só quer relaxar, ou não se anima a enfrentar o trânsito para ir ao cinema. O fenômeno da hora, Meu Eterno Talvez, pôs em evidência uma dupla de atores de traços orientais. Amigos de faculdade, os comediantes Ali Wong e Randall Park escreveram o roteiro inspirados em Harry e Sally — Feitos um para o Outro (1989). Ali é uma chef bem-sucedida que reencontra o personagem de Park, sujeito acomodado com quem vivera uma paixonite na infância. Detalhes da cultura coreana e uma participação brilhante de Keanu Reeves puseram o longa no clube dos populares da Netflix. A receita é simples: amor, família e boas piadas. No fim do dia, é disso que as pessoas gostam.
Publicado em VEJA de 31 de julho de 2019, edição nº 2645