Museus coletam objetos, fotos e vídeos que retratam a pandemia
Espaços do mundo inteiro buscam memórias que expressam o que a humanidade enfrentou na quarentena. A ideia é deixar o registro para a posteridade
Os museus surgiram na Idade Média para conservar o que de mais extraordinário o homem era capaz de produzir. O coronavírus parece ter subvertido essa lógica: descobriu-se na pandemia que o ordinário pode ter imenso valor. Nos últimos meses, curadores do mundo inteiro têm se dedicado a uma tarefa hercúlea, a coleta de objetos, vídeos e fotos que capturam o espírito de um dos períodos mais dramáticos da história da humanidade. A ideia é deixar para as próximas gerações o registro perene do que o planeta enfrentou. “Os museus não são espaços para apenas perfilar objetos e guardar o passado, mas para dialogar e refletir sobre o presente”, diz Maria Ignez Franco, museóloga e ex-presidente do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus. “A pandemia tornou obrigatória para nós a coleta das memórias contemporâneas.” Segundo ela, os curadores brasileiros fazem parte do movimento global de colher artefatos, embora os projetos mais avançados sejam realizados em países como Alemanha, Canadá, Estados Unidos e Itália.
Vale tudo para deixar os rastros do coronavírus para a posteridade. O Autry Museum of the American West, de Los Angeles, comprou o diário de uma criança que escreveu sobre os temores despertados pela pandemia. Em Londres, o Victoria and Albert Museum, referência em arte e design, criou uma página na internet com retratos de “objetos pandêmicos”, como máquinas de costura para a produção de máscaras. “Coletamos também itens que ganharam novos significados”, diz o canadense Brendan Cormier, curador sênior do V&A. “Uma lista de compras do supermercado tem enorme potencial para contar a história da pandemia.” Por ora, os acervos são digitais, mas em breve exposições físicas sobre a Covid-19 se espalharão pelo planeta. Os museus, afinal, não aprisionam apenas as grandes realizações da humanidade, mas também registram os flagelos perpetrados por ela. Exemplos disso são o museu do Holocausto, em Berlim, e o Memorial 11 de Setembro, em Nova York. “Representar tragédias é complexo, já que lidamos com a perda de entes queridos”, afirma Cormier.
A tecnologia tem papel vital na preservação dos acontecimentos atuais. Se os únicos registros sobre a peste bubônica, que matou milhões de europeus até o século XVII, são as macabras máscaras com bico de pássaro usadas pelos médicos, o coronavírus está sendo amplamente documentado, talvez como nenhum outro período histórico jamais foi. Um único smartphone é capaz de gravar o desabafo desesperado de autoridades emparedadas pelo vírus ou os momentos derradeiros de vítimas da doença. Há também espaço para leveza, como cartas de amor escritas por casais separados pela quarentena, ou obras divertidas. A Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, ganhou incontáveis e, em certos casos, hilárias releituras. Ela foi desenhada com máscaras de proteção, segurando papéis higiênicos nas mãos — a compra do item se tornou febre durante a pandemia — ou mais rechonchuda, o que seria o efeito colateral da quarentena.
Peças como essas fazem sucesso na página The Covid Art Museum, que tem 125 000 seguidores no Instagram. “O Brasil é um dos três países que mais nos seguem e contribuem com criações”, diz o publicitário espanhol José Guerrero, um dos idealizadores do projeto. O mais letal vírus desde a gripe espanhola de 1918 representou uma oportunidade para artistas profissionais e amadores. Depois de perder o emprego em um restaurante, o americano Jake Sheiner decidiu pintar cenas de sua solidão na Califórnia. “Isso me manteve saudável”, conta. “Foi terapêutico e abriu portas.” O coronavírus deixará um legado sombrio para a posteridade, mas mostrou que as grandes tragédias também servem de inspiração.
ARTE E HUMOR EM MEIO AO CAOS
A dura realidade do vírus foi eternizada em todas as plataformas
Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697
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