A fantasia — assim como sua prima em segundo grau, a ficção científica — é um dos mais saborosos pecados contra o cânone da literatura ocidental. Na contramão da tradição crítica dominante dos últimos 200 anos, que erigiu o romance realista como ápice da arte de narrar, a literatura fantasiosa (também conhecida pelo nome em inglês, fantasy) esbaldou-se na criação de mundos imaginários, inspirando-se nas antigas mitologias e nos contos folclóricos. Por isso, atraiu chibatadas da alta intelligentsia — o crítico americano Edmund Wilson, por exemplo, escreveu sobre O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien: “É um livro infantil que ficou estranhamente descontrolado”. Indiferentes aos petardos, os amantes do gênero agruparam-se à margem da literatura dita “séria”, formando uma vasta e fértil comunidade extramuros.
Hoje, o triunfo dos desprezados é evidente. O livro que Edmund Wilson odiava é um dos mais vendidos da história — e a fantasy é um fenômeno de público em todo o mundo, inclusive no Brasil. Prova disso é a série de caprichados lançamentos que chegaram às estantes brasileiras em 2018. A Suma acaba de lançar Fogo & Sangue, a nova obra de George R.R. Martin, o mais bem-sucedido autor de fantasia em atividade. Já a HarperCollins Brasil vem produzindo belíssimas edições do próprio Tolkien, cujos direitos autorais a editora adquiriu recentemente. A hora é propícia, portanto, para comparar as obras desses dois autores tão próximos e tão distantes. Pois, apesar do recurso a dragões e feiticeiros e outras óbvias semelhanças, Tolkien e Martin são escritores profundamente diferentes.
J.R.R. Tolkien (1892-1973) foi, antes de tudo, um excêntrico amante das palavras — como revela a leitura do excelente J.R.R. Tolkien: uma Biografia, de Humphrey Carpenter, também publicado pela HarperCollins. Professor em Oxford, estudou o grego, o latim, o gótico, o inglês médio, o anglo-saxão e o nórdico antigo, entre outros idiomas. Tão exacerbado era seu amor às línguas que não se satisfez em conhecer as que já existiam: também se dedicou à criação de idiomas imaginários, como o sindarin, inspirado nos idiomas célticos, e o quenya, semelhante ao finlandês. Filólogo meticuloso que era, resolveu desenvolver uma história para explicar sua árvore linguística ficcional; a isso, somou-se o desejo de elaborar uma série de mitos interligados, que expressassem o espírito poético de sua amada Inglaterra. E assim começou a invenção de um universo próprio, desde as origens cósmicas até o nome das plantas. O projeto colossal, que consumiu as madrugadas e os interstícios de sua carreira acadêmica, jamais chegou ao fim. O Hobbit e O Senhor dos Anéis foram publicados durante a vida do autor, mas a maioria dos relatos sobre a Terra Média permaneceu em estado fragmentário ou em versões nunca revisadas — material que seria postumamente costurado e editado pelo filho, Christopher Tolkien, a partir de pesquisas no espólio paterno.
Essas e outras complexidades cercam os dois lançamentos recentes nas livrarias brasileiras, A Queda de Gondolin e Beren e Lúthien — coletâneas que reúnem múltiplas versões de dois relatos centrais ao ciclo legendário de Tolkien. Dono — ou vítima — de um vertiginoso perfeccionismo, ele costumava reescrever a mesma história diversas vezes ao longo dos anos — oscilando, inclusive, entre a prosa e a poesia. Os tradutores respeitaram as particularidades formais dos textos: nas passagens versificadas, recriaram magistralmente a métrica, as rimas e as aliterações. Graças ao rigor da tradução, as duas publicações mostram como a escrita de Tolkien evoluiu ao longo do tempo — da adjetivação pesada e solene das duas primeiras décadas do século XX ao estilo mais reticente e evocativo dos anos 30, 40 e 50. Belo exemplo da fase madura de Tolkien é a chegada de Tuor às margens do oceano, em A Queda de Gondolin, de 1951: “E naquela hora o Sol se pôs além da beirada do mundo, como um fogo poderoso, e Tuor estava de pé, sozinho, sobre o penhasco, de braços abertos, e um grande anseio encheu-lhe o coração. Diz-se que foi o primeiro dos Homens a alcançar o Grande Mar e que ninguém exceto os Eldar chegou a sentir mais a fundo a saudade que ele traz”.
Os dois compêndios são um festim para os aficionados, mas a abundância de versões e dicções pode deixar os neófitos confusos — ou frustrados. A melhor porta de entrada ao universo de Tolkien continua sendo a tríade formada por O Hobbit, O Senhor dos Anéis e O Silmarillion — que serão relançados pela HarperCollins, em novas traduções, a partir de março.
Tolkien não inventou a fantasia — mas foi o sucesso de O Senhor dos Anéis a partir dos anos 60 que transformou o gênero em um fenômeno global. Todas as obras seguintes tiveram de dialogar com Tolkien — mesmo que fosse para refutá-lo. Na série As Crônicas de Gelo e Fogo, George R.R. Martin despiu a fantasia do subtexto teológico — Tolkien era católico fervoroso —, conferindo-lhe elementos do thriller adulto: sexo, labirintos de intriga, reviravoltas de enredo, descrições de violência aterradora e, nos melhores momentos, um certo cinismo epigramático. Os fãs da saga — origem da série Game of Thrones, da HBO (leia aqui a entrevista dos produtores) — encontrarão muitos desses elementos no romance recém-lançado, embora o estilo de Fogo & Sangue seja mais veloz e compacto. Assim como O Silmarillion conta a história da Terra Média antes de O Senhor dos Anéis, Fogo & Sangue relata os acontecimentos em Westeros séculos antes de A Guerra dos Tronos — mais especificamente, a conquista dos Sete Reinos por Aegon, prócer da família Targaryen (antepassados de Daenerys, a rainha dos dragões de Game of Thrones), e os sangrentos conflitos que envolveram seus descendentes. Se a Guerra dos Tronos lembra um pouco a Guerra das Duas Rosas, conflito civil que devastou a Inglaterra no século XV, Fogo & Sangue remete à invasão normanda e às confusões dinásticas que envolveram os descendentes de Guilherme, o Conquistador.
É difícil imaginar um thriller de fantasia mais envolvente que as obras de Martin. O que lhe falta é precisamente aquilo que sobra em Tolkien: a excentricidade filosófica e o cuidado obsessivo em criar um estilo poético e transcendente. No mundo de fala inglesa, essas virtudes há muito ajudaram a dissipar o ranço de Edmund Wilson. Também no Brasil estava na hora de tratarmos o criador da Terra Média do jeito que merece: como um clássico.
Publicado em VEJA de 2 de janeiro de 2019, edição nº 2615