Para os antigos egípcios, a morte era uma obsessão que ditava todos os detalhes da vida. Dos figurões da corte dos faraós ao mais humilde peão que carregava pedras para a construção das pirâmides, as pessoas gastavam boa parte de seu tempo — e riqueza — bolando estratégias para alcançar a imortalidade. Era preciso negociar com uma infinidade de deuses e, sobretudo, seguir um roteiro intrincado para não ter problemas na “passagem” para o outro lado. Os egípcios mumificavam corpos para conservá-los intactos no além-túmulo. Na dúvida, porém, tinham mil seguros contra acidentes de percurso: das inscrições nos caixões aos utensílios agregados às tumbas, tudo visava a que o falecido tivesse não só vaga garantida no paraíso, mas também uma vida tranquilona após a morte.
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Os egípcios podem não ter chegado à vida eterna do jeito que imaginavam. Mas, ainda que por vias tortas, seus esforços tiveram o efeito desejado: nenhuma outra civilização desaparecida permaneceu tão viva no imaginário humano ao redor do mundo. Não há prova melhor disso que o sucesso da exposição Egito Antigo — Do Cotidiano à Eternidade. Em pouco mais de quatro meses, ela levou mais de 1,4 milhão de pessoas à filial carioca do Centro Cultural Banco do Brasil — o que faz do evento um equivalente no universo das mostras à, digamos, última turnê de Sandy & Junior: foi recorde absoluto de público no CCBB e obteve uma das maiores médias de visitação em todo o planeta em 2019, sempre com alta presença de crianças, adolescentes e pais — todos ávidos, claro, pela selfie ao lado de um sarcófago ou de uma esfinge. Antes de a exposição chegar a São Paulo, nesta semana, 50 000 pessoas já haviam agendado a visita (o acesso é gratuito). As 140 relíquias vindas do Museu Egípcio de Turim, na Itália, ainda vão rodar bastante: devem aportar em Brasília, em 2 de junho, e, por fim, em Belo Horizonte, em 16 de setembro.
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A história do museu italiano é um belo ponto de partida para entender como nasceu a paixão pelo Egito Antigo. O interesse pelos tesouros do tempo dos faraós vem, a rigor, desde a Antiguidade: é célebre o relato que o historiador grego Heródoto fez de sua viagem ao país no século V a.C., narrando a grandiosidade de seus templos e tumbas, bem como detalhes valiosos do processo de mumificação. Mas a curiosidade só se converteu em mania irrefreável após a famosa campanha do francês Napoleão Bonaparte ao Egito, em 1798. Napoleão levou para lá não apenas tropas, mas uma comitiva de 160 estudiosos com a missão de debruçar-se sobre a civilização que floresceu por 5 000 anos. Depois da expedição francesa, reis e colecionadores iniciaram uma corrida para levar peças egípcias para seu país. O porto italiano de Livorno tornou-se o maior entreposto mundial desse efervescente (e hoje proibido) comércio de mercadorias. Isso deu uma vantagem aos italianos logo de saída: pelo equivalente a mais de 60 milhões de euros atuais, um monarca da casa nobre de Saboia adquiriu o acervo que, em 1824, daria origem à primeira grande vitrine de relíquias do Egito no mundo.
Hoje, o museu de Turim possui a segunda maior coleção do gênero, com 35 000 peças — só perde para o imbatível Museu do Cairo. O acervo que se encontra em exibição permanente em Turim inclui múmias em estado de conservação impressionante e uma estupenda ala de esculturas gigantes. O Brasil está recebendo um apanhado decente da coleção. Objetos ilustram o cotidiano dos egípcios comuns, de inscrições e pinturas em pedra que representam cenas familiares a utensílios para maquiagem feminina. Exemplos da arte monumental dos templos também podem ser vistos — entre os quais o maior peso-pesado da mostra: uma estátua de Sekhmet, a deusa-leoa, com mais de 600 quilos.
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O cerne da exposição, contudo, está nas peças que falam da relação dos egípcios com a morte. Esculturas retratam barcos levando pessoas à viagem final. A ala dos caixões traz desde um exemplar basiquinho adornado apenas com um par de olhos — através dos quais o morto podia conferir as oferendas na tumba — até uma imponente tampa de sarcófago feita de pedra. Em meio a eles, há um caixão ricamente pintado mas com fundo manchado — testemunho do estrago causado por uma múmia malfeita. “Serviço porco já existia. Muita gente era enganada por embalsamadores fajutos”, diz o produtor da mostra, Pieter Tjabbes. A mesma lógica do jeitinho regia a ligação dos egípcios com seus pets. Era tradição entre eles fazer múmias de seus gatos para ofertá-las aos deuses. Só que havia atravessadores no caminho. “Muitas dessas múmias eram recicladas ou não tinham gato nenhum dentro”, afirma Tjabbes.
É graças às minúcias prosaicas que se começa a desvendar o fascínio resiliente pelo Egito Antigo: aquelas pessoas que viveram em uma era remota deixaram marcas tão milagrosamente vívidas de sua intimidade e imaginação que quase se pode vê-las em carne e osso diante dos olhos. “Os egípcios nos atraem tanto porque seu legado dá um senso de imortalidade a todos”, diz o diretor do Museu Egípcio de Turim, o italiano Christian Greco. Vida eterna aos faraós — e a nós.
Publicado em VEJA de 26 de fevereiro de 2020, edição nº 2675
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