No início do século XVI, Michelangelo Buonarroti (1475-1564) foi contratado para pintar um afresco nas paredes de um célebre salão do Palazzo Vecchio, em Florença. Batizada de Batalha de Cascina, a pintura “competiria” com a Batalha de Anghiari, encomendada a Leonardo Da Vinci (1452-1519) para adornar o mesmo local — mas nenhuma das obras foi concluída. O trabalho inacabado de Da Vinci foi perdido na reforma do salão, e a obra de Michelangelo ficou só no papel. Foi o suficiente, porém, para causar uma revolução: repleto de corpos nus majestosos, o esboço foi descrito pelo escultor Benvenuto Cellini (1500-1571) como “a escola do mundo” e serviu de base para artistas obcecados em dominar a arte de reproduzir o corpo humano. O desenho original se perdeu com o tempo, mas sua cena central foi eternizada na cópia que será exposta em Michelangelo and Beyond — mostra que faz as atenções do mundo da arte se voltarem para o Museu Albertina, em Viena. Em cartaz a partir da sexta-feira 15, a exposição põe os desenhos do mestre renascentista lado a lado com trabalhos de artistas das mais diversas eras, retratando a evolução da nudez na história da arte à luz de seu maior expert e influenciador.
Michelangelo: The Complete Works
Para iluminar a temática, a mostra reúne treze esculturas e cerca de 120 desenhos advindos do acervo do Albertina e de empréstimos de instituições de peso, como o Louvre, de Paris, e o Metropolitan, de Nova York. Estão presentes trabalhos de Rafael, Dürer, Rembrandt, Rubens, Klimt, Schiele e, é claro, dezessete esboços traçados pelo próprio Michelangelo. “Ele desenvolveu um novo ideal heroico do corpo que, pela sua tremenda força, energia e concepção monumental, foi modelo não só para os artistas do seu tempo, mas também para os dos séculos seguintes”, explicou a VEJA o curador Klaus Albrecht Schröder, diretor-geral do museu.
História do corpo – Vol. 1: Da Renascença às luzes
Para entender o trabalho de Michelangelo, é preciso voltar até a pré-história. Um dos primeiros registros de nudez artística é a Vênus de Hohle Fels, uma escultura de 6 centímetros descoberta em uma caverna no Sul da atual Alemanha, que data de 35 000 anos atrás. Um pouco mais adiante, há 22 000 anos, surgiu a famosa Vênus de Willendorf, uma estatueta rechonchuda encontrada na Áustria. Nessa época, as figuras eram modeladas a partir de corpos naturais de homens e mulheres. Já na Antiguidade clássica, os gregos aproximaram a figura humana da perfeição divina em esculturas como a Vênus de Milo. O corpo atlético da Antiguidade se tornou inspiração para Michelangelo, que desenvolveu sua arte a partir do estudo de modelos reais, esculturas antigas e da anatomia humana, campo da ciência que despontou no Renascimento com as dissecações de cadáveres.
Segundo o pintor e biógrafo italiano Giorgio Vasari (1511-1574), o florentino Antonio del Pollaiuolo (1433-1498) teria sido o primeiro artista a “esfolar corpos humanos” para estudar sua composição anatômica, mas seu conhecimento era rudimentar. Pouco depois, Da Vinci debruçou-se sobre troncos abertos para esmiuçar cada detalhe do corpo humano, mas seu estudo anatômico impecável era mais técnico que artístico, já que a nudez propriamente dita não era tema central de suas pinturas. Mas Michelangelo, sim, era obcecado pelos músculos e seus movimentos. Perfeccionista, ele dissecava clandestinamente cadáveres de criminosos executados, indigentes ou advindos de hospitais para aprofundar suas habilidades artísticas. O conhecimento anatômico permitiu a ele retratar não apenas detalhes físicos como o músculo no antebraço de seu estupendo Moisés que só aparece quando o mindinho está flexionado, como também tormentos psicológicos. “Os músculos expressam não apenas força física, mas também as paixões ferozes, as tensões e agonias internas. Nenhum outro artista chegou perto de capturar o corpo humano como ele”, teoriza o curador Schröder, complementando que Michelangelo estabeleceu novos padrões artísticos em termos de proporção, contorno, volume e movimento.
Fruto dessas experiências, os esboços de Michelangelo foram vertidos em material de estudo concorrido. Ainda em vida, ele deixou duas caixas de desenhos para o pupilo Antonio Mini, que os levou para a França, despertando grande admiração nos artistas da corte. Poucos exemplares, porém, sobreviveram ao tempo e à fúria de seu criador, que chegou a destruir pilhas de desenhos autorais por duas vezes. “A maioria dos sobreviventes é dedicada à forma humana. Dois terços deles são nus”, atesta o curador.
Balanço equilibrado entre o ideal de beleza greco-romano e o estudo da natureza, a nudez de Michelangelo sobreviveu e evoluiu através de seus admiradores e críticos. O pintor flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640) colecionava os esboços do mestre — eram dele as figuras que hoje pertencem ao acervo do Albertina. Se por um lado Rubens reavivou o ideal de Michelangelo, o holandês Rembrandt (1606-1669) abraçou uma nova fase do nu artístico ao romper com a figura atlética e próxima dos deuses herdada da cultura clássica e abraçar uma abordagem naturalista, que retoma, de certa forma, a visão pré-histórica, e muito mais próxima do porte humano dos reles mortais. Figuras como Mulher Nua no Monte funcionam como uma antítese do ideal de Michelangelo, colocando nas telas um corpo sem músculos proeminentes e retomando a figura do nu feminino, muito escanteada no Renascimento pela associação com a imoralidade, a luxúria e o pecado personificado por Eva. A mostra ainda se debruça sobre o enfraquecimento do cânone de Michelangelo a partir do século XIX, com o advento de uma arte mais naturalista. Nesse contexto, Gustav Klimt (1862-1918) mergulhou nos estudos sobre o corpo feminino, em desenhos com figuras curvilíneas que se expressam por meio de poses e gestos. Sua representação abriu caminho para artistas como o expressionista Egon Schiele (1890-1918), que deu vazão a um anátema na obra de Michelangelo, a feiura. “Esses artistas contribuíram para a evolução da representação do corpo humano com suas perspectivas únicas”, diz Schröder. Michelangelo, com certeza, foi o maior de todos.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858
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