No começo, parecia loucura. Norman Ohler primeiro ouviu de um amigo, DJ em Berlim e entusiasta da história alemã, a ideia de pesquisar o uso de drogas por Hitler e sua corja durante a Segunda Guerra Mundial. Era um tema interessante, sem dúvida, mas o jornalista não imaginava que chegaria tão longe, não a ponto de publicar um livro sobre o assunto: High Hitler: As Drogas no Terceiro Reich (tradução por Silvia Bittencourt, Editora Planeta, 375 páginas, 56,90 reais).
Para além da questão cultural (os alemães são obcecados pelos eventos que levaram à ascensão do führer, em grande parte pelo medo de que algo como Holocausto volte a acontecer), Ohler tinha um prazer pessoal em trazer à tona um dos muitos defeitos pouco discutidos de Hitler. O autor cresceu ouvindo as desculpas e mentiras de seu avô materno sobre as atrocidades do ditador, que, de certa forma, o impeliram a buscar a verdade sobre o período. “Com o tempo, me tornei uma pessoa política, com convicções de esquerda – em parte para enfrentar os ideais de direita do meu avô”, contou o autor em entrevista exclusiva a VEJA.
Quanto mais fundo Norman escavava o passado de Hitler, mais achava material para seu livro. Ele encontrou os diários de Theodore Morell, médico particular do líder nazista – a quem apelidou de “Paciente A” –, que se tornaram a principal fonte de informações para High Hitler. Visitas aos arquivos públicos da Alemanha e Estados Unidos também confirmaram o faro certeiro do amigo DJ, junto a um passeio pelas ruínas do laboratório onde era produzida a metanfetamina do führer, algo muito superior à fabricação comandada por Walter White (Bryan Cranston) em Breaking Bead.
High Hitler (um trocadilho entre a gíria “high” e a saudação nazista ao führer “hail”) conduz o leitor por uma viagem cronológica pela ascensão e queda do ditador, algumas vezes pelos olhos de Morell, outras pelos de Norman Ohler. Confira a entrevista completa com o autor:
Alguém tentou frear sua pesquisa? No começo, eu trabalhei junto ao historiador Hans Mommsen, um dos grandes pesquisadores da era nazista. Ele sugeriu que eu conversasse com um antigo estudante dele, que naquele momento era historiador oficial do exército alemão. Prefiro não citar o nome, vamos nos contentar em dizer que era um militar de alta patente. A princípio, ele foi extremamente solícito comigo, mas, quando percebeu que eu escreveria um livro sobre o uso de drogas pelo exército nazista, parou de falar comigo. O oficial não tentou frear minha pesquisa, apenas não respondeu mais aos meus e-mails. Quando perguntei o porquê, ele disse que não iria colaborar para sujar o nome dos militares dessa forma. Segundo ele, eu iria tentar mostrar para o mundo que os alemães lutavam tão bem na Segunda Guerra Mundial porque estavam usando drogas – o que de fato eu fiz e é totalmente verdade – e era contra a ética militar ele me ajudar. Eu fiquei um tanto quanto surpreso com a atitude dele, porque os princípios do atual exército alemão são totalmente contrários aos nazistas. Eu nunca imaginei que eles seriam leais a eles.
Foi difícil conseguir acesso aos documentos e imagens oficiais da época nazista? A maioria dos documentos é de domínio público, então foi basicamente pedir uma cópia para usar no livro. A Alemanha Ocidental, pelo menos, tenta deixar muito transparente tudo o que aconteceu antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Qualquer um tem acesso aos arquivos da época. No entanto, algumas coisas podem se perder em meio a tanto material tão mal organizado.
Você acredita que tal transparência seja uma forma de compensar os crimes do governo de Hitler? Eu acho que é uma forma de que eles não voltem a acontecer. Nós precisamos saber exatamente o que aconteceu, como aconteceu e quem foi responsável. É diferente do que acontece no Japão, por exemplo, onde eles sentem tanta vergonha do passado que simplesmente o ignoram. Nós, alemães, queremos ouvir os detalhes, não importa quão ruins sejam. É quase como se precisássemos falar disso. Algumas pessoas ficam saturadas deste assunto, mas eu acho que é melhor do que esquecê-lo.
Como as drogas eram vistas na Alemanha de Hitler? Quando os nazistas tomaram o poder em 1933, todas as drogas foram proibidas, ao passo que o próprio governo investia na criação de substâncias novas. Em meados dos anos 1930, a empresa Temmler surgiu com um medicamento revolucionário, como eles próprios o chamavam, a metanfetamina, fabricada em um laboratório à la Breaking Bad em Berlim, e comercializada em farmácias. A qualidade da droga era extremamente superior a tudo o que era vendido no mercado clandestino, justamente por ser feita com autorização e incentivo do governo, com recursos de deixar Walter White com inveja.
Como as drogas afetaram Hitler? Hitler era obcecado pela saúde no início do mandado. Ele não usava drogas, bebia, fumava ou comia carne. Basicamente, ele vivia uma vida “pura”, totalmente de acordo com os preceitos nazistas de pureza do sangue. Quando Hitler conheceu seu médico, Theo Morell, ele recebia injeções apenas de vitaminas, uma ou duas vezes por dia. Morell não acreditava no uso de comprimidos, para ele apenas as seringas davam conta do recado. Com o tempo, o ditador passou a tomar este coquetel de vitaminas indiscriminadamente, ele tinha pavor de ficar doente e perder nem que fosse uma hora de vida, ele tinha que estar sempre pronto para ser o grande führer. Mas no outono de 1941 Hitler adoeceu, justamente em meio a uma fase importante da luta contra a União Soviética. Para tirar o ditador da cama, Morell injetou hormônios nele, que dali em diante, passaram a fazer parte da rotina do líder alemão. Antes, Hitler tinha uma aparência saudável, e parecia ser mais jovem do que realmente era. Com o tempo, definhou, começou a tremer, a pele ficou estranha.
Benito Mussolini, o contemporâneo de Hitler na Itália, ficou mesmo intimidado por um surto provocado por drogas do führer? Isso aconteceu quando Hitler tomou pela primeira vez Eukodal, uma droga à base de ópio duas vezes mais forte que a morfina. Ele estava muito nervoso com a possibilidade de Mussolini sair da Segunda Guerra Mundial, levando consigo todo o exército italiano. Para ajudá-lo, Morell aplicou no patrão uma dose da droga que o deixou dele eufórico e confiante. No encontro, Hitler falou por cerca de três horas sem parar. Se o líder italiano estava com medo, eu não sei, mas de fato ele não foi corajoso o suficiente para enfrentar a animosidade do alemão, porque ele simplesmente não aceitaria nenhum contra-argumento. A partir daí, as drogas passaram a abrir vantagem sempre para Hitler nas discussões, e se tornaram parte do coquetel diário dele.
Quais drogas o exército alemão usava durante a Segunda Guerra Mundial? Metanfetamina, na maior parte. De certa forma, ela abriu vantagem para os soldados nazistas na primeira fase da guerra, porque os deixava eufóricos e fazia com que precisassem dormir muito pouco, ganhando tempo para lutar e analisar as estratégias dos Aliados.
As últimas semanas de Hitler são tema do filme A Queda, no qual é retratado um chilique de Hitler que acabou virando meme na internet. De fato, o ditador tinha estes surtos? As últimas semanas de Hitler foram bastante peculiares. Segundo as anotações de Morell – às quais tive total acesso durante a produção do livro –, o führer parou de receber suas doses diárias de opioides e estimuladores no bunker. Sem elas, perdeu a euforia e se tornou infeliz, em parte por estar perdendo a guerra, mas também por abstinência. Ele gritava com os subordinados o tempo todo, começou a tremer e sofria alterações bruscas de humor. Morell escreveu que não administrava mais nenhuma substância em Hitler, simplesmente porque não tinha mais estoque. O médico mandou seus ajudantes percorrerem Berlim de moto atrás das drogas que ele prescrevia a Hitler, mas a cidade estava devastada. A população não tinha comida, as farmácias tinham sido destruídas, bem como o parque industrial farmacêutico. Então, em partes, A Queda retratou o estado crítico em que Hitler estava no final da Segunda Guerra Mundial, mas o filme não explicou por que ele estava daquele jeito. Morell chega a aparecer no longa, mas não desempenha um papel importante na trama, justamente porque o não se compreendia a influência do médico e das drogas sobre Hitler.
Qual foi o fim de Morell? Soldados americanos capturaram Morell no ano de 1945, em uma cidade pequena da Alemanha. O médico foi levado aos Estados Unidos e, por quase dois anos, interrogado acerca de possíveis crimes que teria cometido, mas ele basicamente só dava injeções em Hitler, então acabou absolvido. Foi deixado definhando em frente à estação central de trem em Munique, até que uma enfermeira da Cruz Vermelha, metade judia, o encontrou e levou para um hospital. Sua esposa, Hanni, foi chamada ao local, mas ele morreu poucas semanas depois.
Como a Alemanha recebeu seu livro? As pessoas ficaram eufóricas, e logo High Hitler se tornou um best-seller, com resenhas nos principais veículos. Alguns historiadores, no entanto, disseram que, por eu ser um escritor, não tinha permissão para escrever como fazem os historiadores. Não que isso tenha me incomodado, o tema é bastante controverso, e eu escrevi um livro para o público geral, não para os especialistas em história.
Você acredita que nós devemos temer a ascensão de um ditador hoje? Com certeza. Temos assistido a desdobramentos bastante preocupantes na política internacional, a democracia está certamente em apuros. Na Alemanha, especialmente, eu não acredito que teremos outro governo autoritário – depois de Hitler, nos tornamos bastante cuidadosos, aprendemos a lição. Já nos Estados Unidos, por exemplo, Donald Trump não chega a ser um ditador, mas também não é um líder democrático, o que já é um problema gigante. Mas, no momento, eu veria a ascensão de um líder autoritário no Reino Unido, eles estão de mãos atadas no momento.
Você conhece algum autor brasileiro? Dois, na verdade. Aquele famoso, Paulo Coelho, mas ele é péssimo. E Clarice Lispector, que é absolutamente incrível.