Alice (Ingrid Guimarães) é uma empreendedora nata, workaholic, destemida e criativa – em suma, um mulherão de dar inveja. Apesar disso, alguma coisa na sua vida não está certa e, um dia, ela decide parar. Deixa a empresa nas mãos da mãe e anuncia sua saída do mercado. De Pernas pro Ar 3, que estreia nesta quinta-feira, 11, é obviamente uma comédia, mas poderia muito bem ser um drama – palavras da diretora Julia Rezende, que chega para dar vida nova à franquia.
Rezende, 33, trabalhou como assistente de direção de Roberto Santucci nos dois longas anteriores e, agora, assume o comando do projeto pela primeira vez. Ela também está em cartaz na Netflix com a série Coisa Mais Linda e, até o final de abril, terá filmado seu sétimo longa, Depois a Louca Sou Eu, com Débora Falabella no papel principal.
Para quem conhece o trabalho da diretora, sua fala não surpreende. São dela títulos como Meu Passado Me Condena, Ponte Aérea e Como É Cruel Viver Assim, que parecem tão diferentes entre si quanto água e vinho, mas que têm em comum justamente essa mistura entre drama e humor, entre as frustrações do cotidiano e a surpresa do riso. “É engraçado que eu nunca fui uma consumidora de comédias, não tenho atração pelos pastelões”, diz Rezende a VEJA, refletindo sobre seu próprio histórico. “Mas, ao mesmo tempo, penso que o humor é um elemento que pode aproximar as pessoas e fazê-las pararem para pensar em assuntos sérios”.
No caso de De Pernas Pro Ar 3, o “assunto sério” é o feminismo – tão em voga e, ao mesmo tempo, tão espinhoso. Alice se mostra perfeita para mediar a discussão: simultaneamente bem-sucedida e insegura; inovadora, mas com um pé em conceitos “ultrapassados”, como a rivalidade feminina e a resistência ao universo digital. Assim, com uma protagonista nem-tão-empoderada, o público entende a mensagem e pode abraçar a mudança sem se sentir julgado.
“O feminismo é fundamental, não tem mais como escapar e voltar atrás”, defende a diretora, uma das cinco mulheres com filmes estreando nesta quinta, entre onze lançamentos.“Cada vez que mostramos para o mercado que somos capazes, que temos o mesmo talento e a mesma força para realizar obras que vão ter destaque, estamos abrindo espaço para outras mulheres.”
Confira a entrevista com a cineasta:
O que te levou a assumir a franquia De Pernas pro Ar agora, no terceiro filme? Numa franquia, naturalmente o público espera ver aquilo que já conhece, reconhecer os personagens e o universo pelo qual já se apaixonou, mas, ao mesmo tempo, você precisa trazer algum olhar de ineditismo. O projeto começou a fazer sentido para mim quando decidimos falar da mulher contemporânea, dessa divisão interna que ela vive entre o trabalho e a família. Eu estava trabalhando com um filho de 8 meses no colo, ia para o set amamentando, então estava muito mobilizada com esse assunto, pensando em como se faz para dar conta de tudo. A Alice está tentando equilibrar os pratinhos, tentando não abrir mão de tudo o que conquistou, mas, ao mesmo tempo, tem a sensação de que é uma “mãe pior” porque não está presente no dia-a-dia da família. Acho importante olhar para isso de uma maneira delicada e cuidadosa. Ninguém faria um filme sobre um homem que tem que se dividir entre o trabalho e a família, não é? Só o fato de isso ser um assunto já diz muito sobre a nossa sociedade.
O longa aborda a competição feminina com a chegada da Leona (Samya Pascotto), uma versão mais jovem, mais moderna e mais antenada que pode ameaçar o sucesso da Alice. Você vê essa situação no cinema, com mulheres temendo a presença umas das outras? A Ingrid escreveu o roteiro junto com Marcelo Saback e Rene Belmonte e muitas das cenas com a Leona foram escritas por ela e pela Samya Pascotto, que trouxe esse olhar. Ela é uma menina jovem, tem 26 anos e é de uma geração feminista, com outra visão sobre tudo isso, o que ajudou a atualizar esse discurso. Foi fundamental para quebrarmos essa visão de competitividade, de que uma mulher vai tomar o lugar da outra. Eu verdadeiramente acredito no contrário: cada mulher que dirige um filme abre espaço para que outras façam o mesmo. Cada vez que uma diretora faz um longa que tem repercussão, que vai para um festival internacional, ou que faz sucesso de bilheteria, ela está abrindo espaço para que outras tenham a possibilidade de conquistar esse mesmo lugar.
O movimento feminista tem crescido muito, especialmente desde 2017 com temas como o #metoo, discussões sobre salários iguais, o slogan “lute como uma mulher”. Que mudanças você tem sentido no mercado desde que isso começou? O feminismo é fundamental, não tem mais como escapar e voltar atrás. Eu pessoalmente nunca sofri com machismo no set de filmagem, ou talvez nunca tenha prestado atenção a isso porque estava preocupada demais em me afirmar capaz, por ser jovem e filha de um diretor e uma produtora, mas percebo que existe sim uma falta de espaço. Vemos cada vez mais mulheres dirigindo e o Brasil sempre teve uma cultura de ter muitas produtoras, mas ainda faltam muitos espaços para serem ocupados. Precisamos que as pessoas que financiam e distribuem os filmes sejam mulheres também. Porque, quando tivermos mulheres ocupando esses lugares, certamente a produção será diferente.
Você também dirigiu alguns episódios da nova série da Netflix Coisa Mais Linda. Como foi sua participação? Dirigi dois episódios dos sete e participei um pouco do processo de pré-produção, opinando na escolha de elenco, locação, etc.. Nossa divisão funcionava assim: cada diretor dirigia, digamos, 90% do seu episódio e sempre podia haver colaborações dos outros, então acabei dirigindo um pouco de todos. Mas os que são plenamente meus, que eu montei, editei e tudo, são os episódios 4 e 6.
O que você achou da experiência de trabalhar pela primeira vez com a Netflix? Achei uma experiência super rica. Eles têm uma visão muito forte de dramaturgia, de entendimento do público… As notas deles sobre montagem eram sempre construtivas e contribuíram no produto final. Também tivemos tempo para filmar e uma estrutura muito boa com figurinos, cenários e uma fotografia linda. E eu nunca tinha dividido a direção. Dirigir para o cinema é um processo sempre muito solitário e adorei a possibilidade de trocar com outros diretores, discutir o processo de criação.
Tem sido difícil para o cinema médio – os dramas, as histórias mais comuns – levar o público às salas escuras, então as séries estão ocupando esse lugar
O Brasil tem produzido muito mais séries para o streaming nos últimos anos. Como você vê esse momento? Eu acho que é um processo de mudança natural e universal. O cinema está sofrendo uma transformação muito grande. Cada vez mais as pessoas querem pagar o ingresso para assistir a filmes que são eventos, como os da Pixar, da Disney, com muitos efeitos especiais ou que tenham a atração de uma estrela muito poderosa, que cria uma certa urgência. Sinto que tem sido difícil para o cinema médio – os dramas, as histórias mais comuns – levar o público às salas escuras, então as séries estão ocupando esse lugar.
Que possibilidades esse formato traz para o público e para os criadores? Elas permitem que você conte histórias que não conseguiria no cinema, mas que também não têm o perfil de uma novela, de um produto de televisão aberta. Você tem a possibilidade de explorar assuntos com mais profundidade, de mergulhar em histórias, em personagens… Cada vez mais acredito que o público quer se apaixonar por personagens. Mad Men é isso, Família Soprano, Homeland… Esse é o grande desafio da nossa dramaturgia: criar personagens fortes que possam manter a atenção das pessoas por várias temporadas.
Seu jeito de trabalhar com o humor parece trazer um tom diferente do que o público acostumou a associar à comédia nacional. Essa discussão sobre a comédia é super complexa, porque não existe “a comédia”, existem obras com humor e variações muito amplas. Um longa como Benzinho, que é dramático, tem humor. É um filme lindo. Ao mesmo tempo, você tem as comédias mais escrachadas, mais abertas. É engraçado que eu nunca fui uma consumidora de comédias, não tenho muita atração pelos pastelões, sempre fui muito mais uma espectadora do drama. Mas, ao mesmo tempo, penso que o humor é um elemento fundamental, que pode aproximar as pessoas e fazê-las pararem para pensar sobre assuntos sérios.
Quais são suas referências? Muitos diretores que admiro têm essa capacidade de misturar humor no drama: Billy Wilder, François Truffaut, Woody Allen, Domingos de Oliveira… Isso é uma coisa que o cinema argentino faz muito bem – há muitas produções com o (Ricardo) Darín, por exemplo, que têm esse tom. Não tenho muito interesse na piada pela piada. O interessante é construir uma história que poderia ser contada num outro tom – De Pernas pro Ar, por exemplo. É a história de uma mulher que se viu desempregada, construiu uma nova carreira como vendedora de sex shops e fez muito sucesso, mas teve uma crise no casamento e precisou lidar com alguma rejeição dentro da sociedade por estar “abandonando” seus filhos. Essa história poderia perfeitamente ser um drama, mas contá-la com humor é uma escolha. A história, em si, não existe para fazer rir.
Quais diretoras são inspirações para você? No Brasil, a Helena Solberg, que é de outra geração que abriu muitas portas para todas as outras mulheres, e Laís Bodanzky, que é uma grande referência, cujos trabalhos são todos acertados, de uma delicadeza, de uma profundidade enorme. Não posso deixar de falar da Sofia Coppola, que tem a capacidade de trabalhar com pouca ação externa – os filmes dela são sobre acontecimentos internos e personagens que estão lidando com questões pessoais e íntimas, o que é maravilhoso. Tem uma diretora chamada Massy Tadjedin, que fez um longa que eu amo que se chama em português Apenas Uma Noite. Enfim, são muitas. E tem uma geração jovem no Brasil que também está chegando com tudo, o que é muito inspirador.
O que pode dizer sobre o novo longa que você está filmando, Depois A Louca Sou Eu? É baseado no livro da Tati Bernardi, que também escreveu os roteiros de Meu Passado Me Condena. Ela narra as experiências pessoais sobre como é viver com crises de pânico, ansiedade, medicação tarja preta. É um retrato dessa “geração Rivotril”, como ela chama, que está se medicando e tentando encontrar uma paz, uma felicidade, uma capacidade de estar no mundo. Ela fala muito que é uma personagem “lidando com o susto de estar no mundo”, e eu a entendo como uma mulher tentando sobreviver a si mesma. É um assunto sério, dramático, com um olhar bem humorado. E essa é a grande marca do texto da Tati: ela é uma pessoa que ri de si mesma o tempo todo, por isso seu livro causa tanta identificação. Quem a interpreta no filme é a Débora Falabella, que é uma atriz enorme – estou muito encantada com a possibilidade de dirigi-la. O roteiro é do Gustavo Lipztein e a gente filma até o final de abril no Rio de Janeiro e em São Paulo. Está ficando lindo, estou animada!