Dois gênios separados por 1 600 anos opinaram, com humor e sutil ironia, sobre a ausência de sexo na vida cotidiana. “De todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência”, disse o escritor e cronista Millôr Fernandes na década de 70, naquela que se tornaria uma de suas frases mais conhecidas. No século V, o teólogo Santo Agostinho reconheceu, ao seu modo e para o provável espanto de seus pares, os prazeres advindos da conjugação carnal. “Dai-me castidade e continência, mas não agora”, escreveu o autor de Confissões. O que ambos não poderiam supor, evidentemente, é que, muito tempo depois, quando todas as repressões já deveriam ter sido superadas, uma nova geração demonstraria pouca disposição para o ato sexual. A recente castidade, ao que tudo indica, poderá ser uma tendência para o futuro, embora muita gente — a maioria, ressalte-se — vá continuar praticando freneticamente o livre prazer.
Os psicólogos até criaram uma expressão para definir a nova realidade: apagão sexual. Ela é comprovada por números. Segundo estudo realizado em 2020 pelo Instituto Karolinska, de Estocolmo, na Suécia, e que contou com a participação 9 500 pessoas, o total de homens com idade entre 18 e 24 anos que não fizeram sexo nos últimos doze meses chegou à surpreendente marca de 30,9%. Ou seja: um e cada três não se deitaram com ninguém em um período de um ano. Basta dar uma espiada em estudos anteriores para detectar a mudança. Em 2002, a abstinência era de 18,9%. Entre as mulheres, a inatividade saltou de 15,1% para 19,1% no mesmo período e na mesma faixa etária. Elas, portanto, também diminuíram a frequência sexual, mas para eles a transformação foi mais intensa.
Ainda que seja irresistível sugerir uma revolução conservadora, a nova onda não marca o retorno dos jovens a velhos preconceitos. Segundo especialistas, a abstinência é resultado de mudanças de atenção e do desejo de orientar a energia vital para outros assuntos, como o mercado de trabalho cada vez mais competitivo ou, quem sabe, o sonho de passar no vestibular. A tendência ganhou impulso graças a um evento ao mesmo tempo inesperado e avassalador: a pandemia do novo coronavírus. Com as restrições de circulação e as intermináveis quarentenas, os solteiros saíram menos, o que passou a ser um impeditivo para que pudessem encontrar um parceiro considerado adequado. “Surgiu assim uma nova barreira para os que já não eram tão afeitos ao sexo”, diz Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e coordenadora do Programa dos Estudos em Sexualidade (ProSex) do Hospital das Clínicas.
Há fatores que transcendem o contexto atual e que provavelmente serão duradouros. A tecnologia é um deles. Com o acesso fácil ao sexo a distância, e diante da onipresença das redes sociais, muitas pessoas se sentem desestimuladas a conhecer o outro em toda a sua totalidade. Preferem, de certa forma, se esconder na segurança da internet. O fenômeno foi comprovado por inúmeros estudos. Até as conversas telefônicas, fonte de paquera para outras gerações, sumiram do mapa — tudo agora se dá nas mensagens frias de WhatsApp. Os jovens seguirão fazendo sexo, mas talvez de um jeito diferente.
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720