A proximidade do fim do mundo, ou melhor, da extinção da espécie humana, é um medo que persegue John Green desde a infância. Aos 10 anos, em visita a um planetário na Flórida, ele ouviu pela primeira vez que, daqui a bilhões de anos, o Sol se tornará uma estrela gigante vermelha que sugará a Terra. A imagem do planeta derretendo não o abandonou desde então. O pavor se somaria a outro: diagnosticado com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), Green padece de um temor irrefreável de doenças contagiosas. A palavra pandemia já era parte de seu vocabulário bem antes de 2020 tornar seu receio realidade. Engana-se, porém, quem achou que um escritor assim teria seu confortável bunker equipado para o Apocalipse. Enquanto as prateleiras dos supermercados americanos ficavam vazias — com papéis higiênicos esgotados —, às vésperas do lockdown, Green estocava latas de seu refrigerante favorito. “Apesar de me preocupar com pandemias a vida toda, não sabia como me preparar para uma”, disse, aos risos, em entrevista via Skype a VEJA (leia abaixo).
Antropoceno: Notas Sobre A Vida Na Terra
Quem É Você, Alasca?
Autor de romances adolescentes que agregam prestígio a popularidade, caso do comovente A Culpa É das Estrelas (2012), que sozinho corresponde à metade dos 50 milhões de livros vendidos por Green no mundo, o americano de 44 anos revelou sofrer do transtorno no lançamento de Tartarugas Até Lá Embaixo, romance de 2017 protagonizado por uma adolescente com TOC. Nasceu daí uma especulação equivocada: o livro foi lido como uma autobiografia disfarçada.
Tartarugas Até Lá Embaixo
A Culpa É das Estrelas
Para desfazer a confusão — e também organizar em sua mente o período caótico da pandemia —, Green escreveu Antropoceno: Notas sobre a Vida na Terra, seu primeiro livro de não ficção, que acaba de chegar ao Brasil. Inspirado no podcast The Anthropocene Reviewed, também produzido pelo autor, o livro contém 45 ensaios em que Green fala de assuntos relacionados à atual era geológica — ou seja, o período em que o ser humano vem dominando o planeta. Entre análises e pílulas sobre sua vida pessoal, o autor se dedica a resgatar a esperança perdida na humanidade. “A vida pode ser injusta. Nossos governantes podem ser cruéis e indiferentes. Mas a beleza do mundo também é real. Vale a pena lutar por ele”, diz.
À primeira vista, os temas dos ensaios parecem triviais: vão de ursinhos de pelúcia a cachorros-quentes. Nas mãos de Green, porém, o frugal dá mote a divagações espertas, com sua característica mistura de humor com melancolia. Irônico, ele usa a praxe de classificar tudo com uma a cinco estrelas como régua — uma alfinetada na obsessão moderna de reduzir as experiências da vida a itens que cabem em rankings. Procurar estranhos no Google, por exemplo, ganha 4,5 estrelas. Ele conta, em seguida, como, após décadas, descobriu na internet o destino da última família que assessorou quando atuava como capelão de um hospital infantil. A experiência difícil fez com que desistisse do seminário anglicano e do desejo de ser bispo — e instigou-o a ter interesse em escrever para adolescentes.
O sucesso não demorou. Em 2005, ele conquistou o público com Quem É Você, Alasca? Dez anos depois, o romance sobre jovens em um internato entrou na mira de pais conservadores e foi banido de escolas pelo “conteúdo sexual”. A celeuma teve efeito reverso: a obra ganhou adaptação para a TV, lançada no Brasil pela HBO Max. Mas foi A Culpa É das Estrelas, romance entre dois jovens com câncer, que converteu Green em pop star da literatura teen e da internet. Além dos 11 milhões de seguidores nas redes, ele e seu irmão, Hank, bateram 2 bilhões de visualizações em seus canais conjuntos no YouTube. Hoje, Green vive com a mulher, curadora de arte, e um casal de filhos de 11 e 8 anos. A caçula, aliás, foi a única na família a ter Covid, na volta às aulas. Ela se curou — e papai vai sobrevivendo à pandemia.
“Existe humor em meio ao caos”
John Green falou a VEJA sobre o novo livro, saúde mental na pandemia e sua esperança nos jovens de hoje.
Antropoceno é quase uma autobiografia. Era essa a intenção? Em parte, sim. Sou reservado, logo é comum que me associem aos meus protagonistas. Mas não sou meus personagens. Apareço na escrita por meio dos sentimentos, desde o modo de lidar com a paixão até a dor da perda.
Quão difícil foi se abrir sobre sua saúde mental? Ainda há muito estigma, mas sou a prova de que uma pessoa com um sério transtorno mental pode ter uma vida boa, produtiva e saudável se tiver acesso a um bom tratamento médico.
Como é ter TOC em uma pandemia? Eu já estava preocupado quando os primeiros casos de Covid-19 surgiram na China. Comprei sessenta latas de Diet Dr Pepper, meu refrigerante favorito, para o lockdown (risos). Apesar de me preocupar com pandemias a vida toda, eu claramente não sabia como me preparar para uma real. A questão é dentro da minha cabeça. Os pensamentos que não controlo.
Como assim? Eu convivo desde sempre com um medo irracional de doenças infecciosas. Com essa pandemia, tive noção de quão vulnerável e frágil eu sou, assim como são frágeis o sistema de saúde americano e nosso senso de comunidade.
Essa falta de senso social estaria relacionada ao movimento antivacina? Pois é. Não entendo essas pessoas. Meu irmão, Hank, é mais paciente para conversar com elas. Tenho até me afastado das redes sociais. Eu me sinto exausto. As pessoas não querem dialogar.
Mas você é uma celebridade na internet. Eu era um entusiasta da internet. Ela me permitiu a conexão com o mundo inteiro. Mas fui ingênuo em não prever o ambiente perverso que ela se tornaria.
O livro fala sobre a necessidade que todos têm de emitir opiniões. É um problema vindo das redes? Sim, minha meta é justamente ter menos opiniões. Nós nos sentimos obrigados a palpitar sobre tudo. Sento num banco e penso: quantas estrelas esse banco merece? As experiências mudam se você as vive pensando em como vai avaliá-las.
Pretende voltar a escrever romances para jovens? Quero escrever outro romance. Para adolescentes? Não sei. Estou ficando velho. Mas é gratificante ter um lugar à mesa de alguém que está formando seus valores. Tenho esperança nos jovens.
Apesar do momento caótico, seu livro tem muito humor. Como acertar o ponto? Fui capelão em um hospital infantil, o lugar mais triste do mundo. Aprendi que existe humor em meio ao caos. A vida é assim. Ela é engraçada e melancólica, é linda e assustadora. Precisamos conviver com tudo isso.
Missão difícil para tempos de crise, não? Depende de onde você coloca sua atenção. Aprendi a valorizar pequenas coisas. Precisamos lembrar quanto a humanidade é incrível. Como fizemos músicas lindas, obras de arte, como é amar alguém. Somos a coisa mais interessante que este planeta já abrigou.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754
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