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Já foi pior: ‘Medicina dos Horrores’ conta os primórdios das cirurgias

Diante das histórias do livro, até quem se deprime com os rumos da humanidade vai se sentir aliviado por viver nos dias de hoje

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 19 jul 2019, 16h57 - Publicado em 19 jul 2019, 06h30

Com quase 1,90 metro e dotado de frieza célebre na execução do ofício, o cirurgião Robert Liston levou só 28 segundos para realizar uma experiência que mudaria a história da medicina. Em 21 de dezembro de 1846, cidadãos de Londres apinhavam-se em um anfiteatro, com roupas e botas sujas de quem voltava do trabalho, para vê-lo conduzir o primeiro teste na Inglaterra de uma substância que prometia eliminar o suplício nas operações — até então feitas sem anestesia. O paciente foi sedado com o “novo truque” — a inalação de éter — antes de ter uma perna amputada. O cirurgião era conhecido pela destreza: não se intimidava em segurar com os dentes a faca ensaguentada se precisasse ficar com as mãos livres. A rapidez, porém, podia ser capciosa: em certa ocasião, ele decepou por engano os testículos de um infeliz. Na tarde histórica do uso do éter, Liston cortou a carne em volta do fêmur e, como de praxe, serrou o osso. Sim, tudo isso em exatos 28 segundos. Pela primeira vez ali, um paciente não viu nem sentiu nada durante pesadelo tão pavoroso. “Dominamos a dor!”, exultaria um jornal médico dias depois.

MEDICINA DOS HORRORES, de Lindsey Fitzharris (tradução de Vera Ribeiro; Intrínseca; 320 páginas; 59,90 reais e 39,90 reais na versão digital) (./Divulgação)

No instrutivo ainda que inevitavelmente lúgubre Medicina dos Horrores, a inglesa Lindsey Fitzharris volta à era vitoriana para iluminar os esforços heroicos dos profissionais que penaram — nem tanto quanto seus pacientes, claro — para erigir os alicerces da cirurgia moderna. Era um tempo em que as técnicas ainda se revelavam rudimentares não só pela perturbadora inexistência da anestesia. Os primeiros cirurgiões nem sequer tinham formação médica: assim como mecânicos ou artesãos, eram trabalhadores manuais que ganhavam pouco e se impunham na profissão por sua perícia no manejo de serrotes e cutelos, habilidade que não se aprendia na escola, mas até mesmo em açougues.

Especialista em história da medicina pela Universidade de Oxford e dona de um canal de sucesso no YouTube sobre as curiosidades macabras dos primórdios da atividade, a autora lembra como, até nem tanto tempo atrás assim na história, ainda era arriscado — não raro, uma sentença de morte chocante e dolorosa — extrair um dente ou submeter-se a uma operação de apêndice. Ironicamente, ela oferece conforto até a quem se deprime com os rumos da humanidade atual. “Todos nós sabemos como é ficar doente. A diferença entre estar doente hoje e no passado é o que desejo frisar”, disse Lindsey a VEJA.

O livro traz uma galeria dos cirurgiões intuitivos e brutamontes que reinavam na Inglaterra de meados do século XIX — dos quais o mais fascinante foi Robert Liston. Além de ter seu método curto e grosso de, digamos, extirpar pela raiz os males dos pacientes, Liston desenhava suas peculiares ferramentas de trabalho. Entre 1888 e 1891, mais de quarenta anos depois de sua morte, a notória “faca de Liston” foi o modelo usado nos assassinatos em série do misterioso Jack, o Estripador. Açougueiros, ops, especialistas como Liston atuavam em ambientes que em nada lembravam as salas cirúrgicas de agora. Desde o Renascimento, a dissecação de cadáveres em anfiteatros era quase uma forma de entretenimento na Europa. A impressão do filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) resume o que se passava nesses espaços: “Que visão terrível é um anfiteatro de anatomia! Cadáveres fétidos, a carne lívida e purulenta, sangue (…), esqueletos medonhos. Acreditem, não é um lugar aonde eu vá para procurar diversão”.

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CARA LIMPA - Joseph Lister: de herói da medicina a nome de enxaguante bucal (Oxford Science Archive/Print Collector/Getty Images)

Os hospitais não eram melhores do que os anfiteatros: os próprios doutores se referiam a eles como “Casas da Morte”, de tão insalubres e assolados por infecções fatais. É nesse ponto que entra em cena o personagem central do livro. Joseph Lister (1827-1912) daria o passo seguinte ao advento da anestesia: foi graças à sua obstinação que a medicina começou a valorizar a antissepsia. “Sobreviver à cirurgia era uma coisa. Alcançar a recuperação era outra”, escreve a autora. Movido por suas observações em microscópio, Lister foi pioneiro em aplicar às cirurgias as ideias revolucionárias — mas então ferozmen­te repelidas — do francês Louis Pas­teur (1822-1895), cujos estudos demonstraram a existência dos germes. Como seu inspirador, Lister foi combatido. Ele defendia o uso do ácido carbólico (ou fenol) para exterminar os germes em operações e hospitais. Lister triunfou: como mostra a pintura que ilustra a reportagem, depois dele os cirurgiões passaram a se exibir nos anfiteatros com as indefectíveis roupas imaculadamente brancas. Ao aplicar seu método à drenagem de um abscesso da rainha Vitória, ele ganhou fama — seu sobrenome daria origem até a um enxaguante bucal muito conhecido, o Listerine (embora o produto não tenha sido invenção sua). Lister fez com que o número de mortes por infecções pós-­operatórias caísse dramaticamente. Mas, claro, ainda faltava bastante chão até atingir a terceira e decisiva conquista para tornar as cirurgias mais seguras: os antibióticos só seriam descobertos em 1928. “Não sei se seria corajosa o suficiente para entrar na faca no século XIX”, diz a autora. Alguém aí se arriscaria?

Publicado em VEJA de 24 de julho de 2019, edição nº 2644

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