Como a maioria dos brasileiros, a publicitária carioca Marcella Farias, de 24 anos, foi batizada na Igreja Católica e reza toda noite a oração do anjo da guarda, que aprendeu em criança. Nem por isso dispensa cobrir o umbigo com esparadrapo e pôr um punhado de cristais na bolsa para se proteger contra “energias ruins”. Além, claro, de ler religiosamente o horóscopo — ela é virginiana. “Acredito que tudo está conectado. E me interesso por qualquer coisa que ajude a me conhecer melhor”, diz. Nesse ponto, Marcella é o espelho de sua geração. Pesquisas no Brasil e no exterior mostram que os jovens dos dias de hoje, os pragmáticos e individualistas millennials, querem distância dos rituais da religião tradicional e se aproximam cada vez mais das práticas esotéricas. Entre os brasileiros, os que se dizem ateus saltaram de 1,6% para 8% em três décadas — e são justamente os jovens que mais deixam a igreja. Mas não param de cultivar crenças. Segundo uma pesquisa da Universidade de Kent, na Inglaterra, com entrevistados de seis países, 35% dos brasileiros não crentes acreditam em “forças do bem e do mal” — ou, como reza o famoso ditado espanhol, “não creio em bruxas, mas que existem, existem”.
As explicações para o fenômeno variam do místico ao sociológico. Um fator sempre citado para o esvaziamento das igrejas é o impacto dos recorrentes escândalos e tragédias protagonizados por líderes religiosos e militantes extremistas. Há quem jure que a culpa é da Era de Aquário — o novo “alinhamento astrológico” prometido para o início do século XXI traria a derrocada das grandes religiões e a consciência coletiva de que todos somos um pouco deuses. E contam muito, claro, a ultraveloz troca de informações e a disseminação de novos conceitos permitidas pela internet. “Pós-modernidade é justamente a contestação das verdades absolutas. Mas, como o ser humano é essencialmente moral, a saída que vem encontrando é adotar preceitos não convencionais emprestados da filosofia oriental”, explica o filósofo Francisco Razzo. Ele ressalta que, historicamente, a adesão ao esoterismo está ligada a períodos de transformação social e alta insegurança como o que estamos vivendo. “No Renascimento, vimos a ascensão de Giordano Bruno, que morreria queimado pela Santa Inquisição. Mais recentemente, tivemos a onda esotérica de 1960-1970, ao fim da euforia do pós-guerra”, lembra. Nos tempos modernos, Razzo ressalta a influência do físico austríaco Fritjof Capra na concepção de um mundo onde “tudo está conectado”.
Encaixa-se neste movimento o que o papa Francisco definiu como religião self-service — alimenta-se o que se deseja, descarta-se o resto. “A internet tem um papel fundamental na proliferação das práticas místicas”, diz o youtuber Bruno Gimenes, de 42 anos, dono do canal Luz da Serra, destinado a desvendar o universo de chacras, auras, signos e que tais, com mais de 4,5 milhões de visualizações por mês. “A faixa etária da audiência rejuvenesceu dez anos nos últimos dois. O assunto ficou cool”, afirma Gimenes, que contrata funcionários com base no mapa astral. Dos tempos em que tinha consultório, o químico, hoje terapeuta holístico, lembra que a maior procura era por limpeza de aura, exercício que consiste em inspirar, expirar e imergir em luzes imaginárias. “Nas religiões tradicionais, muita gente desobedece aos dogmas e se conforma com a mentira. Hoje, há quem troque a mentira pela conveniência”, critica o youtuber.
No estilo vida saudável (veja reportagem), cabeça feita e ceticismo que os caracteriza, os millennials esotéricos não gostam de dizer amém e usam a internet e as redes sociais para questionar e refletir sobre as práticas milenares. “A gente quer pensar. Se fosse para receber tudo de mão beijada, voltaríamos para as religiões tradicionais”, alfineta Eduardo Mello, de 32 anos, naturólogo especializado em terapia com cristais (a quem interessar: o quartzo rosa incentiva o amor-próprio e a malaquita facilita curas espirituais). Em seu consultório em São Paulo, Mello atende pacientes e também ministra cursos na área das terapias ligadas à natureza. É evidente que, nesse contexto, a interpretação do zodíaco, que precede a maioria das religiões, está na linha de frente — é difícil encontrar um jovem atualmente que não tenha na ponta da língua que pessoas do signo de Capricórnio são céticas, de Virgem, organizadas, e de Escorpião, rancorosas. A paulista Tatiane Lisbon, de 27 anos, a Papisa, abandonou a carreira de design de interiores e está entre as astroinfluencers (sim, esse é o termo) que mais fazem sucesso nas redes com previsões astrais, numerologia e tarô. Astrologia também é o ganha-pão de Isabella Heine, de 37 anos, outra estrela do Instagram, que cobra 400 reais por mapa astral e dá cursos sobre o tema. “Quando comecei, há vinte anos, era a única novinha entre um monte de mulheres mais velhas. Hoje, quase todas as minhas alunas são jovens”, diz.
Como era de esperar de um universo em franca expansão, os negócios relacionados ao misticismo crescem sem parar. No ano passado, o mercado de “serviços místicos” nos Estados Unidos alcançou 2,2 bilhões de dólares. Dois aplicativos americanos de leitura de horóscopo receberam aporte sem precedentes de grandes grupos investidores: 1,5 milhão de dólares no Sanctuary, em que astrólogos atendem on-line, e 5 milhões de dólares no Co-Star, baixado mais de 3 milhões de vezes. No Astroloucamente, o campeão nacional do horóscopo no Instagram, com cerca de 2,5 milhões de seguidores, a produtora de conteúdo Maria Talismã, nome de guerra de uma potiguar de 26 anos que se recusa a revelar rosto e identidade, fatura alto fazendo menção a empresas como a Universal Music e a 99Pop. “Chego a ganhar 12 000 reais em um mês com esse trabalho”, estima. “Ao se associar aos signos, as marcas estabelecem um canal de conexão com o cliente. O individualismo é a marca desta geração e esses sites abrem uma possibilidade de identificação coletiva”, explica o sociólogo Dario Caldas, da consultoria Observatório de Sinais. A busca pelo espiritual, que canaliza o anseio ancestral do ser humano de ordenar o mundo à sua volta, continua firme e forte — só que agora, de preferência, sem a interferência de dogmas. Com tantas opções ao alcance de um clique, ser ateu à moda antiga virou coisa de gente sem visão. Ou dos céticos capricornianos.
Com reportagem de Bruna Motta
Publicado em VEJA de 14 de agosto de 2019, edição nº 2647