Há dez anos, Ryan Nicodemus encontrou o amigo Joshua Fields Millburn e ficou intrigado: 30 quilos mais magro e com um sorriso no rosto, Millburn parecia outra pessoa. A história dos jovens de Ohio, no Meio-Oeste americano, convergia. Criados em famílias de baixa renda, por mães dependentes químicas, ambos mergulharam no mundo corporativo apostando que o acúmulo de bens seria o passaporte para uma vida melhor. O salário alto trouxe casas enormes e carros de luxo, mas também crises de ansiedade, relacionamentos frustrados e dívidas na casa dos 100 000 dólares. Quando sua mãe morreu de câncer e a então esposa pediu o divórcio, Millburn teve uma epifania: percebeu que “as coisas mais importantes da vida não são coisas”. Em questão de meses, livrou-se de mais da metade de suas posses. “Não sou alérgico a coisas ou dinheiro, mas decidi ter apenas o essencial”, disse ele a VEJA (leia entrevista). Inspirado por Millburn, Nicodemus fez seu próprio ritual de passagem em uma intervenção apelidada de “festa das caixas”. Tudo o que ele tinha em casa foi embalado. Ao longo de 21 dias, abriu só as caixas com utensílios de fato úteis. No fim do prazo, 80% delas continuavam fechadas — os itens sem função acabaram doados, vendidos ou descartados. “Eu me senti, de fato, rico”, disse, após a sessão de desapego.
Surgia assim a dupla de gurus que faz sucesso pregando um novo estilo de vida: o “minimalismo”. Os dois — hoje aos 39 anos — pediram demissão de seus empregos e fizeram fama entoando o mantra de que ter menos bens traz mais felicidade. Em 2010, criaram o blog The Minimalists — que atualmente soma 20 milhões de visitantes. Lançaram livros, podcast, canal no YouTube e viajam o mundo dando palestras. Dois documentários coroaram a jornada de popularidade: Minimalismo, de 2015, e Minimalismo Já, lançado pela Netflix em janeiro deste ano. Os filmes apresentam desde depoimentos de quem aderiu ao movimento até vislumbres dos excessos das indústrias da moda e da tecnologia, que aceleraram os hábitos de consumo, produzindo mais e poluindo o planeta na mesma medida.
A nova cultura do desapego empresta o nome de um dos “ismos” da arte contemporânea. Só que a corrente pós-moderna conhecida como minimalismo passa longe do evangelho da simplicidade dos gurus da Netflix: por trás de suas obras cerebrais, há uma superabundância de teorização. Faz mais sentido buscar as raízes do minimalismo comportamental em religiões orientais associadas a hábitos austeros, como o budismo e o hinduísmo. No Ocidente, a ideia já ganhava evidência nos anos 30, quando o filósofo Richard Gregg (1885-1974) criou o conceito da “simplicidade voluntária”. O americano deixou Harvard rumo à Índia para virar discípulo de Mahatma Gandhi (1869-1948), e passou a condenar o “materialismo”.
No hiperconectado século XXI, o desapego ganhou novo fôlego e abarca uma ampla (e por vezes vaga) gama de hábitos, da compra de bens às refeições, passando pela espiritualidade. Celebridades como Keanu Reeves e Robert Pattinson seguem a vertente e doam boa parte dos milhões de dólares que embolsam. Buscas sobre o minimalismo alcançaram um pico no Google em 2019. Desde março de 2020, quando a pandemia obrigou a população a ficar em casa — e a notar a quantidade de coisas que possuía —, a média de visualizações de vídeos sobre o tema cresceu 70% no YouTube. Neles, casas pintadas de branco e com poucos móveis viram cenário para falar de meditação, decoração minimalista ou como ser um “consumista consciente”.
O que os minimalistas preconizam, no fundo, é uma nova ética do consumo, alicerçada em hábitos racionais. Um minimalista não para de fazer compras, mas o faz com menos frequência e prioriza itens de melhor qualidade. É o caso da curitibana Ana Desidério, de 33 anos, que inverteu a lógica do “tempo é dinheiro”. “Toda vez que compro algo desnecessário estou gastando meu tempo de trabalho nisso”, diz. A atriz cria o filho, Arthur, de 3 anos, à luz do conceito. “Fazemos brinquedos com material reciclável”, afirma. Tais hábitos se expandiram para a vida digital. A assistente social paulista Regina Lima, de 49 anos, “enxugou” os contatos nas redes sociais para alimentar relações mais íntimas e perder menos tempo on-line. O minimalismo veio depois que ela se viu com uma dívida de 70 000 reais e precisou de um empréstimo de emergência. “Consumismo é uma doença difícil de vencer”, diz. Regina congelou o cartão de crédito — literalmente — no freezer. Hoje, só compra à vista e investe o que sobra. O mínimo pode ser o máximo.
Com reportagem de Tamara Nassif
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723