Enquanto divulgava seu best-seller Breve História de Sete Assassinatos, sobre um atentado sofrido por Bob Marley nos anos 70, o escritor Marlon James fez uma piada que ganharia repercussão inesperada. Fã de fantasia, ele afirmou que seu próximo livro seria um “Game of Thrones africano”. A declaração se espalhou e chegou aos ouvidos de George R.R. Martin, autor da saga que deu origem à série de sucesso da HBO. Dias depois, ao atender o telefone, James ouviu Martin do outro lado: “Quer dizer que você fará uma versão africana do meu livro?”. James desconversou: “Não é bem isso que estou fazendo. Ou talvez seja”. Martin terminou a conversa convidando o autor jamaicano para visitá-lo. No encontro, os dois trocaram figurinhas sobre a ideia que daria origem a Leopardo Negro, Lobo Vermelho, primeiro volume de uma planejada trilogia — e agora lançado no Brasil.
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A referência à série da HBO tem lá suas razões — mas com muitas ressalvas. Leopardo Negro, Lobo Vermelho é uma aventura antropológica, e não política. É também mais densa que Game of Thrones em sua teia de personagens, conduzida por dois mercenários, o lobo e o leopardo do título. O primeiro é um malandro apelidado de Rastreador, por seu olfato aguçadíssimo; o outro, um transmorfo que assume formas de humano e de bicho. Os dois são contratados por um traficante de escravos para encontrar uma misteriosa criança roubada. Suspeita-se que o menino seja herdeiro de um império. A odisseia passa por cidades e tribos ancestrais de uma África pré-colonização, antes do século XIV. Bruxas, prostitutas, necromantes e reis cruzam as páginas protagonizando cenas com alta dose de violência e de sexo — elementos que, enfim, justificam a comparação com a fantasia adulta de George R.R. Martin.
“Sem Game of Thrones, meu livro não seria publicado”, disse James a VEJA, reconhecendo o pioneirismo de Martin na exploração desse tipo de enredo. Nascido em Kingston, capital da Jamaica, o autor de 50 anos tomou gosto pela leitura graças ao incentivo dos pais, ambos policiais, e depois buscou na literatura fantástica refúgio contra o bullying que sofria na escola. Cresceu lendo J.R.R. Tolkien e quadrinhos da Marvel, até notar que nenhum deles refletia a história de seus antepassados. “Essa literatura é eurocêntrica e segue uma estrutura cristã: com um grande salvador, o bem contra o mal. O folclore africano é mais complicado.”
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Para entender a África sem o filtro europeu, James mergulhou em quatro anos de pesquisa e fez uma ampla viagem ao continente. “Eu queria minha história de volta”, explica. Descobriu então que as lendas africanas eram mais “bagunçadas” que as ocidentais. Algumas histórias traziam protagonistas mentirosos, que obrigavam o interlocutor a decidir se o que estava ouvindo era verdade ou não — recurso usado por ele no livro. Deparou, ainda, com um folclore sensual, sem distinções de gênero feminino e masculino, além de uma enorme diversidade de seres sobrenaturais — alguns inspirados nos orixás comuns à cultura brasileira. A união desses elementos trouxe à luz um mundo excêntrico, que remete em alguma medida às pinturas do holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). Rastreador, por exemplo, conta que uma vez foi contratado para encontrar um rei que se afogou. Ele teve de descer ao mundo dos mortos, onde as pessoas são coloridas e os cavalos têm seis patas. Lá, foi perseguido por demônios que brotam do teto.
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A complexidade da trama se acentua com a linguagem cheia de referências a dialetos africanos — ousadia que levou a obra a ser recusada por algumas editoras. Isso, depois de James ganhar o prestigioso Man Booker Prize por seu livro sobre Bob Marley, além de contar com interessados em adaptar o livro para o cinema antes mesmo de estar pronto (fechou contrato com o ator Michael B. Jordan). James é acostumado, porém, a lidar com a rejeição. Seu primeiro romance, John Crow’s Devil, de 2005, sobre dois líderes religiosos em guerra pelo controle de uma cidade, foi recusado por 78 editoras. “Escrevo livros difíceis. Não subestimo o leitor. E já provei que são vendáveis”, diz.
Na Jamaica, James estudou em instituições renomadas, que lhe garantiriam uma vida confortável no país. Mas, por ser gay e temer a homofobia na ilha do reggae, o autor se estabeleceu em Nova York, antes de se mudar para o estado americano de Minnesota, onde atua como professor de literatura. Em 2019, entrou para a lista de pessoas mais influentes da Time. Seus antepassados se sentiriam orgulhosos.
Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725
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