O Festival de Toronto, que termina no domingo (16), deixou claro que o cinema americano está bastante preocupado com o racismo e temas relacionados, como o encarceramento em massa – compondo 12% da população, os negros são 33% da população carcerária –, a discriminação por perfil racial e a brutalidade policial contra negros. Faz sentido: o movimento Black Lives Matter (“vidas negras têm importância”, em tradução livre) começou em 2013, cinco anos atrás, e o assunto tem sido amplamente discutido, especialmente depois das marchas de supremacistas brancos e nazistas nos Estados Unidos.
Green Book (livro verde, em tradução direta), de Peter Farrelly, foi a grande surpresa do festival e tem tudo para surpreender no Oscar. Baseado numa história real, o filme traz Viggo Mortensen como um segurança ítalo-americano contratado para ser motorista do músico Don Shirley (Mahershala Ali, ganhador do Oscar de coadjuvante por Moonlight – Sob a Luz do Luar) pelo sul dos Estados Unidos em 1962, quando ainda estavam em vigor leis de segregação racial. Tony é um tipo bronco e pouco polido, o contrário de Shirley, que passa por muitas situações de racismo. Mesmo tendo sido contratado como a estrela de concertos, ele precisa ficar em hotéis destinados a negros e não pode jantar no restaurante do próprio lugar onde vai se apresentar. Contando com grandes atuações da dupla central, é o chamado “feel-good movie”, aquele filme que faz bem para a alma, mesmo mostrando situações feias.
O próprio Barry Jenkins, diretor de Moonlight, volta com If Beale Street Could Talk (Se a rua Beale pudesse falar, em tradução direta), adaptação da obra de James Baldwin, sobre um jovem casal, Tish (KiKi Layne) e Fonny (Stephan James), separado quando ele é preso, acusado falsamente de estupro nos anos 1970. Jenkins alterna cenas do passado feliz do casal com episódios de racismo, como a dificuldade de alugar um apartamento, e a luta para libertar Fonny. O que salva os dois, apesar de tudo, é o amor que sentem um pelo outro.
A brutalidade policial é o tema de The Hate U Give, de George Tillman Jr., baseado no best-seller de Angie Thomas O Ódio que Você Semeia, e Monsters and Men (Monstros e Homens, em tradução direta), de Reinaldo Marcus Green. Em The Hate U Give, Starr (Amandla Stenberg) vê seu amigo ser morto por um policial e sofre pressões da sua comunidade. Em Monsters and Men, um policial negro, um jogador de basquete e uma testemunha do crime precisam decidir como se posicionar depois do assassinato de um homem negro pela polícia.
Em What You Gonna Do When the World’s on Fire? (O que você vai fazer quando o mundo estiver em chamas?, em tradução livre), o italiano Roberto Minervini fala das dificuldades enfrentadas pelos negros em Nova Orleans e em Jackson County, Mississippi, ameaçados pela violência e o racismo dos supremacistas brancos. Skin (Pele, em tradução direta), dirigido pelo israelense Guy Nattiv, conta a história real de Bryon Winner (Jamie Bell), um jovem criado por skinheads nos Estados Unidos, que rejeitou o ódio e a violência pregados por sua família.
Já As Viúvas, de Steve McQueen (vencedor do Oscar por 12 Anos de Escravidão), é um thriller com muito drama sobre as mulheres deixadas para trás quando seus maridos, que preparavam um grande assalto, são mortos pela polícia. Lideradas por Veronica (Viola Davis), elas resolvem colocar em prática o último plano mirabolante dos homens, para poder devolver o dinheiro do roubo, destinado ao candidato a vereador Jamal Manning (Brian Tyree Henry), que agora as ameaça. Num dos momentos do filme, Robert Duvall, que faz um magnata de Chicago, profere um discurso de ódio, usando palavras racistas.
Se a eleição de Barack Obama fez crer, por um breve momento, que o racismo estava superado, o atual governo americano, incapaz de condenar os supremacistas brancos que causaram a morte de uma mulher em Charlottesville, deixa bem evidente que o problema está longe de ser resolvido. O cinema está apenas refletindo isso — e ganhando elogios e aplausos, como aconteceu em Toronto, enquanto o faz. Mas os filmes servem também para o Brasil, igualmente construído graças ao suor e sangue dos escravos africanos e que ainda precisa enfrentar mais claramente o racismo contra os negros e pardos, que são a maioria da sociedade – inclusive aumentando sua presença no cinema e na televisão.