Principal festival de cinema do mundo, Cannes chega à sua 70ª edição tentando mostrar que ainda preza a tradição, mas está antenado com o que acontece no mundo. A edição deste ano começa nesta quarta-feira com a exibição da produção francesa Les Fantômes D’Ismaël (em inglês Ismaël’s Ghosts ou “os fantasmas de Ismael”, em tradução livre), de Arnaud Desplechin, fora de competição. Até aí, nada novo. A grande novidade — e motivo de celeuma — foi a inclusão na disputa pela Palma de Ouro de dois longas-metragens da Netflix, de episódios de duas séries de televisão e de um curta-metragem de realidade virtual dirigido por Alejandro González Iñárritu.
A realidade também está visível nas medidas de segurança mais rígidas tomadas este ano, com a instalação de raio-X nas entradas do Palais des Festivals, onde ficam todas as salas da seleção oficial, na patrulha de muitos policiais a pé, de bicicleta e moto nas ruas, e no fechamento de diversas ruas de acesso à Croisette para impedir um ataque com caminhões, nos moldes dos que aconteceram na vizinha Nice e em Berlim. Pela primeira vez, policiais municipais estão autorizados a portar armas – anteriormente, apenas os federais tinham permissão para isso.
Esse estado de coisas no mundo não se reflete muito nos filmes escolhidos para a competição, no entanto. Apenas alguns parecem falar de questões sociais e políticas mais de frente, caso de Happy End (“final feliz”, na tradução), do austríaco Michael Haneke, que tenta levar sua terceira Palma de Ouro reunindo-se novamente com Isabelle Huppert (com quem fez A Professora de Piano) e Jean-Louis Trintignant (Amor). Os dois interpretam membros de uma família de classe média em Calais, com a crise de refugiados ao fundo. Em se tratando de Haneke, pode-se esperar muito do filme, mas não um final feliz. O ucraniano Sergei Loznitsa (My Joy) também costuma mostrar a realidade do seu pedaço de mundo. Em Krotkaya (em inglês, A Gentle Creature, “uma criatura delicada”, na tradução), uma mulher sofre ao tentar descobrir o que aconteceu com seu marido na prisão. Jupiter’s Moon (“a lua de Júpiter”, na tradução) do húngaro Kornél Mundruczó, fala de um jovem imigrante que, depois de levar um tiro ao tentar atravessar a fronteira, descobre ter adquirido poderes especiais.
Já Okja, do sul-coreano Bong Joon Ho, mostra a luta de uma menina contra uma grande corporação depois que levam seu melhor amigo, um grande animal. O filme é uma das duas produções da Netflix na competição – a outra é The Meyerowitz Stories (New and Selected), de Noah Baumbach. Antes mesmo do início do festival, abriu-se uma polêmica entre a companhia de streaming e os cinemas franceses, que não concordam com a eliminação da janela de três anos entre o lançamento de um filme no cinema e plataformas como a Netflix, prevista na legislação francesa. A Netflix às vezes lança seus longas também no cinema, mas sempre concomitantemente com o streaming. A controvérsia fez com que os filmes estivessem ameaçados de serem retirados do festival, que acabou decidindo mantê-los, mas estabeleceu que, a partir do ano que vem, será obrigatória a exibição dos competidores nos cinemas franceses.
Outros diretores preferem apostar nos relacionamentos – é o caso da japonesa Naomi Kawase (Hikari, ou Radiance em inglês, “brilho”, na tradução), do francês François Ozon (L’Amant Double, ou “o amante dobrado”) e do sul-coreano Hong Sangsoo (Geu-Hu, ou The Day After em inglês, “o dia seguinte”, na tradução). O prolífico Sangsoo também tem outro filme fora de competição, Keul-le-eo-ui Ka-me-la, em que volta a trabalhar com Isabelle Huppert. Sangsoo está filmando muito: em fevereiro, competiu em Berlim com o ótimo Bamui Haebyun-eoseo Honja, vencedor do Urso de Prata de atriz para Kim Minhee, que também estrela os dois novos filmes.
Enquanto isso, Sofia Coppola retorna a Cannes com uma refilmagem: O Estranho que Nós Amamos parece dar contornos feministas ao thriller filmado por Don Siegel e estrelado por Clint Eastwood em 1971. Aqui, Colin Farrell é o soldado inimigo acolhido pelas mulheres interpretadas por Kirsten Dunst, Elle Fanning e Nicole Kidman, em um dos quatro projetos que apresenta em Cannes – os outros são The Killing of a Sacred Deer (“a morte de um cervo sagrado”, na tradução), do grego Yorgos Lanthimos, também em competição, How to Talk to Girls at Parties (“como falar com garotas em festas”), de John Cameron Mitchell, fora de competição, e a série Top of the Lake: China Girl, de Jane Campion.
Cannes, que sempre se mostrou mais resistente à inclusão de programas de televisão na sua seleção oficial do que Berlim, Veneza e Toronto, este ano se rendeu. Além de Top of the Lake, mostra os dois primeiros episódios da retomada de Twin Peaks, de David Lynch, que volta 25 anos após seu final. Verdade que Campion, única mulher a ganhar a Palma de Ouro (por O Piano), e Lynch são nomes consagrados primeiro pelo cinema.
A realidade virtual, que é uma das apostas da indústria e sempre apareceu em eventos de divulgação em Cannes, pela primeira vez é encampada pelo diretor artístico Thierry Fremaux: com sete minutos de duração, Carne y Arena (“carne e areia”) tem direção de Alejandro González Iñárritu e fotografia de Emmanuel Lubezki. Os dois, como se sabe, são os mexicanos que venceram dois Oscar de direção (Birdman e O Regresso) e três de fotografia (Gravidade, Birdman e O Regresso), respectivamente.
O Brasil só tem um longa-metragem no Festival de Cannes, Gabriel e a Montanha, de Fellipe Gamarano Barbosa (Casa Grande), na mostra paralela Semana da Crítica, que conta com Kleber Mendonça Filho como presidente do júri. O curta Nada, de Gabriel Martins, é exibido na paralela Quinzena dos Realizadores.
Confira os destaques do Festival de Cannes:
Wonderstruck, Todd Haynes
O diretor americano (Carol) volta a Cannes com um filme baseado no livro de Brian Selnick sobre duas crianças de épocas diversas que desejam vidas diferentes.
Okja, de Bong Joon Ho
Com produção da Netflix, o diretor sul-coreano (Expresso do Amanhã) conta a história de Mija (An Seo Hyun), separada de seu amigo/animal de estimação pela poderosa CEO de uma companhia (Tilda Swinton).
Happy End, de Michael Haneke
Vencedor da Palma de Ouro com os dois últimos longas que apresentou em Cannes, A Fita Branca e Amor, o austríaco Michael Haneke vem com um filme sobre uma família burguesa num cenário dominado pela crise de refugiados.
Geu-Hu, de Hong Sangsoo
O cineasta sul-coreano mostra seu segundo filme do ano, sobre uma nova funcionária confundida pela mulher de seu chefe com uma ex-amante dele. E também o terceiro, Keul-Le-Eo-Ui Ka-Me-La (Claire’s Cinema), fora de competição.
Twin Peaks, de David Lynch
Em 1990, o cineasta americano revolucionou a televisão com a série sobre um agente do FBI e sua investigação de um assassinato numa pequena cidade. Agora, o diretor, que disse ter abandonado o cinema, volta com episódios inéditos.
O Estranho que Nós Amamos, de Sofia Coppola
A cineasta promete uma versão sob o ponto de vista das mulheres da história contada por Don Siegel em 1971. Nicole Kidman, Kirsten Dunst e Elle Fanning acolhem um soldado inimigo ferido na Guerra Civil Americana.
D’Après Une Histoire Vraie, de Roman Polanski
O cineasta, sempre envolto em polêmica, participa do Festival de Cannes fora de competição, com um filme estrelado por sua mulher, Emmanuelle Seigner, e por Eva Green sobre uma relação conturbada de uma escritora e uma fã ardorosa.
Sea Sorrow, de Vanessa Redgrave
A consagrada atriz estreia na direção com um documentário sobre a crise mundial dos refugiados. Ela não é a única atriz a se aventurar na direção: Kristen Stewart apresenta um curta, Come Swim.
Gabriel e a Montanha, de Fellipe Gamarano Barbosa
O segundo longa de ficção do diretor de Casa Grande baseia-se na história real de Gabriel Buchmann, estudante brasileiro que morreu numa trilha do Monte Mulanje, em Malauí.
Carne y Arena, de Alejandro González Iñárritu
O cineasta mexicano faz sua primeira experiência com realidade virtual, com a ajuda do seu habitual parceiro, o diretor de fotografia de Emmanuel Lubezki.