No estúdio que manteve em Paris nos anos gloriosos da carreira, entre 1921 e 1940, o americano Man Ray promoveu inovações em várias frentes. Expoente de duas vanguardas ruidosas, o dadaísmo e o surrealismo, ele atacou de início como pintor e escultor. Logo se converteu em desbravador da fotografia de moda, produzindo ensaios até hoje influentes para as revistas Vogue e Harper’s Bazaar. Foi ainda na fotografia, afinal, que alcançou seu grande feito — nada menos do que elevar essa forma de expressão ao patamar de arte. Para Man Ray, a labuta no estúdio era, digamos, duplamente extenuante: ele gostava de trabalhar deitado na cama — sempre na companhia de belas mulheres.
Daí vem, naturalmente, a sensualidade radiante dos 225 itens de Man Ray em Paris, a primeira mostra devotada ao maior fotógrafo modernista realizada até hoje no país. Com abertura na quarta-feira 21, na filial paulistana do Centro Cultural Banco do Brasil (em dezembro, o acervo aporta em Belo Horizonte), a retrospectiva ilumina um artista que foi discreto perto de seus pares mais famosos nos mesmos movimentos — pois seria difícil competir em egolatria ou capacidade de chamar atenção com o francês Marcel Duchamp e o catalão Salvador Dalí. Mas, embora trabalhasse quieto, Man Ray era famoso em toda a Paris boêmia por sua facilidade em unir o útil ao agradável. Ele amava retratar o corpo feminino, decupado especialmente em nus radicais (não raro tão despudorados que fariam corar políticos com medo de Bruna Surfistinha). “Man Ray tinha a reputação de ser um dom-juan, um grande fornicateur”, diz a curadora francesa Emmanuelle de l’Ecotais. “Objeto de desejo e de fantasias, a mulher emerge em suas fotografias sempre num mundo estranho, desmaterializada”, divaga a especialista.
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No mundo real, havia bastante matéria envolvida no negócio: as musas de Man Ray eram também suas amantes. As principais beldades foram Kiki (1922-1926), Lee Miller (1929-1932), Meret Oppenheim (1933-1934), Ady (1936-1940) e Juliet (a partir de 1941). Kiki foi a modelo da célebre e muito imitada Noire et Blanche (Negra e Branca), imagem surrealista que exibe o rosto da modelo em pose sonhadora (sonhos eram uma obsessão surrealista) ao lado de uma máscara africana. Quando Kiki o largou, Man Ray exprimiu sua ira em outro símbolo da fotografia: Lágrimas, em que os olhos de uma manequim surgem em close, com gotas de vidro simulando choro.
Nem só de retratos femininos se fez a obra do dom-juan modernista. Possivelmente, Man Ray foi o inventor da selfie: em imagens precursoras como o autorretrato acima, ele capta a si mesmo diante do espelho. Na entrada da mostra, os espectadores serão convidados a copiar sua pose. Ainda que abranja toda a sua trajetória, a exposição se detém principalmente nos anos em Paris até 1940, que foram os mais produtivos. Judeu, Man Ray teve de fugir da Europa na II Guerra, mas voltou mais adiante e viveu lá até a morte, em 1976, aos 86 anos. Nessa fase tardia, já era prisioneiro do sucesso. “Ele adotou o discurso provocativo de que a fotografia não era arte, enquanto ele era precisamente aquele que tornou a fotografia uma arte”, diz a curadora. Man Ray fez sua fama na cama — mas, ao posar para a posteridade, não se deitou nela.
Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648