Na noite de 25 de maio de 2020, o americano Colson Whitehead, de 51 anos, terminou de escrever Trapaça no Harlem, seu décimo e mais recente livro, publicado este mês no Brasil pela Harper Collins. A manhã seguinte, contudo, foi marcada por um déjà vu indigesto: mal tinha ele levantado da cama quando viu Minneapolis, nos Estados Unidos, irromper em protestos. Era o primeiro de três dias de levantes motivados pelo assassinato de George Floyd, cujo estrangulamento pelo policial Derek Chauvin fora o estopim para a eclosão do movimento Black Lives Matter mundo afora. Quis o acaso (se é que dá para chamar assim) que Whitehead terminasse o livro com um pano de fundo similar: no Harlem de 1964, época em que se passa o romance, um motim explodiu por causa da morte de um rapaz negro de 15 anos, James Powell, por um tenente branco da polícia nova-iorquina. “Escrever sobre uma barbaridade racial que aconteceu 50 anos atrás é escrever sobre as mesmas barbaridades que acontecem hoje”, resume o autor em entrevista a VEJA.
O curioso é que, para escrever sobre os protestos no Harlem da década de 1960, Whitehead tomou o cuidado de situar o livro em ao menos uma semana após o incidente – para, segundo ele, não explorar o tema e não torná-lo o centro da história. E, no dia seguinte, “lá estávamos nós de novo”. Não é uma coincidência: “Os crimes são reincidentes, porque não punimos os responsáveis do jeito que deveríamos. Se nada muda, continuamos a contar as mesmas histórias terríveis de sempre”, diz. Apesar do pano de fundo, Trapaça no Harlem transcende a questão racial – uma guinada que, para quem o conheceu graças ao sucesso estrondoso de The Underground Railroad: Os Caminhos Para a Liberdade (2016), pode parecer inusitada. O livro, adaptado por Barry Jenkins para uma série homônima da Amazon, venceu o Pulitzer ao cutucar as feridas abertas da escravidão nos Estados Unidos com roupagem de ficção-científica. O romance seguinte, O Reformatório Nickel (2019), se baseia em uma brutal escola da Flórida para menores infratores – que, na verdade, era um recinto de tortura mental e física – e escancara como o racismo opera, muitas vezes, dentro da lei. Com ele, conquistou uma façanha: se tornou o único escritor na história a ganhar dois Pulitzers seguidos, e o quarto a levar dois para casa. Agora, ele escreve com leveza e humor as desventuras de moradores do famoso bairro de Manhattan.
Com as expectativas altas em torno de seu próximo trabalho, Whitehead decidiu surpreender e envergou esforços para um formato que até então não tinha atacado: o romance policial. “Eu já escrevi um livro sobre zumbis, outro de não-ficção sobre pôquer, outro sobre inspetores de elevadores”, explica ele. “É um alívio voltar para um formato onde eu posso contar piadas coloridas, depois de escrever sobre a escravidão americana e reflexos da era Jim Crow no sul americano.” A trama de Trapaça no Harlem acompanha Ray Carney, pai de família e vendedor de móveis e tapetes requintados, cujo maior sonho é ascender à classe média-alta do bairro e arranjar um apartamento dos bons. Não raro, a suada loja de Carney inclui no catálogo mercadorias roubadas pelo primo Freddy e outros sócios desagradáveis – e suas andanças no mundo de ilicitudes paravam por aí. Isto é, até a hora que Freddy o envolve em um assalto ao luxuoso Hotel Theresa, onde a alta sociedade negra, de Malcolm X a Louis Armstrong, costumava se hospedar. Dali por diante, Carney toma gosto pelas “trapaças” e se torna o arquiteto de esquemas ainda mais ambiciosos, enquanto se equilibra no muro que o divide entre o reino do crime e o da vida honesta.
Enquanto Carney reflete sobre essa área cinzenta, Whitehead faz um estudo de caso da natureza humana – e da própria Nova York da época, descrita nas minúcias. O retrato do Harlem, tradicional bairro negro de cena cultural e comercial palpitante, é fruto de uma extensa pesquisa que incluiu análises de jornais da década de 1960 para estimar preços de bonés e xícaras de café, caminhadas pelas esquinas mais sombrias de Nova York e até um estudo sobre diferentes modelos de cofres. No livro de memórias de Mayme Hatcher Johnson, esposa do bam-bam-bam do crime no Harlem, Bumpy Johnson, encontrou um baú de dicas sobre empreitadas criminosas. “Eu não sou uma mente do crime”, brinca ele. “Mas tive que pensar em cada detalhe dos planos como se o fosse.” O romance trafega por pontos cruciais do Harlem, como o Marcus Garvey Park e as esquinas da Avenida Morningside, local onde a loja de Carney é instalada. Quando a vida no crime lhe adiciona uma boa dinheirama ao bolso, o honesto pero no mucho vendedor de móveis cria uma segunda entrada no estabelecimento para recepcionar os clientes da pesada – um retrato de como a própria Nova York é repleta de surpresas. Quem garante que uma mera lavanderia, ou, no caso, uma loja de móveis, não é só uma fachada para operações ilícitas?
Mais do que isso, Whitehead empresta parte de seu próprio passado à trama. Nascido e criado em Nova York, o americano escreve sobre a cidade natal com afeto e desespero, como se espelhasse em si as infinitas contradições – da riqueza pujante à pobreza opressora, do glamour à sujeira – que moram por lá. Os pais dele, aliás, moraram no Harlem na época em que se passa o livro, embora ele advirta: não é uma obra com traços autobiográficos. “A montanha de pesquisas que fiz me permitiu encontrar a Nova York de Carney, em oposição à minha”, diz. “Se eu puder continuar escrevendo em diferentes modos e vozes, o trabalho permanece fresco para mim – e, espero, para os meus leitores.” Missão cumprida.