Muitos artistas no nosso país precisam ter duas, três, quatro, cinco profissões para obter sustento, e isso mostra como é um desafio enorme viver disso no Brasil. Comigo não foi diferente. Trabalhei como bombeiro militar por quase uma década, época em que conciliei o emprego fixo com a pintura, minha verdadeira paixão. Com muito esforço, consegui vencer os obstáculos e hoje sou um dos convidados na Bienal de Arte de Veneza, uma mostra de grande prestígio internacional, onde exponho uma série de retratos. Mas o início não foi simples.
Nasci em Brasília, mas prefiro dizer que sou um artista goianiense. Mudei para a capital de Goiás com minha família ainda na infância, quando minha mãe, funcionária pública, passou em um concurso na cidade. E foi em Goiânia que me tornei artista. Eu adorava histórias em quadrinhos e copiava os desenhos de Os Cavaleiros do Zodíaco usando papel-carbono, para depois pintá-los com lápis de cor. Já que os gibis eram em preto e branco, a escolha das cores ficava totalmente em minhas mãos, brincadeira que eu adorava. Logo mais, na adolescência, tratei de iniciar meus estudos sobre pintura. A convite da mãe de um amigo, entrei aos 14 anos na Escola de Artes Visuais de Goiás, instituto público de formação que funcionava junto com o Museu de Arte Contemporânea da capital. Lá, além de me aprofundar na pintura, tive contato com a fotografia e a performance, técnicas que mexeram muito com a minha cabeça. Frequentar aquele espaço foi o que despertou minha ideia de viver da minha criatividade.
O próximo passo para realizar esse sonho foi cursar artes visuais na Universidade Federal de Goiás. Vendia minhas obras por preços baixos a quem se interessasse, para conseguir comprar mais material e continuar produzindo. Para custear as despesas e permanecer nos estudos, prestei um concurso público, e foi assim que me tornei bombeiro. Além de um segundo emprego, o quartel foi como uma segunda escola para mim. Eu frequentava a faculdade pela manhã e, no restante do dia, me dedicava ao resgate de vítimas de acidentes e incêndios. Aprendi muito sobre cuidar das pessoas no tempo em que passei em hospitais, e até hoje a experiência se reflete na minha arte. Lido muito com a questão da cautela e do respeito com os outros quando estou pintando. Penso sempre em como esses personagens gostariam de ser representados, quais roupas gostariam de vestir e em qual contexto social eles estão inseridos. Nas minhas telas, busco evidenciar as pessoas negras, que são maioria no Brasil, mas quase não aparecem nos museus.
Em 2016, enquanto ainda equilibrava a profissão de artista com a de bombeiro, fui convidado para expor na Bienal de Arte de São Paulo. Naquele momento, uma voz ecoou na minha cabeça: “Do que mais você precisa para acreditar que a arte é seu caminho?”. O país estava numa crise política, e eu sabia que o desafio de viver de arte era uma constante. Então, eu me arrisquei. Foi um baita gesto de coragem largar o Corpo de Bombeiros e abraçar de vez a outra carreira. Me agarrei ao pensamento de que, se eu dedicasse toda minha energia àquilo, as portas iriam se abrir. E, por sorte, elas realmente se abriram. A venda dos meus trabalhos na Bienal foi um sucesso, e desde então eu posso dizer que, sim, vivo de arte.
Para chegar aonde estou, fui muito ajudado. Uma pessoa que me acolheu foi a Rosana Paulino, minha madrinha na arte. Ela sempre dizia: “Quando você tiver condições, vai passar essa história adiante”. E é o que busco fazer. Fundei o Sertão Negro, ateliê e escola de artes em Goiânia, com o objetivo de apoiar novos talentos. Ser artista vai além de pintar: é preciso deixar contribuições para o mundo.
Dalton Paula em depoimento dado a Mariana Carneiro
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890