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Doc sobre os Beatles tem bons momentos, mas é confuso e arrastado

'Beatles: Get Back', de Peter Jackson, tem apuro técnico e revelações saborosas. Como entretenimento, contudo, é decepcionante - e sonolento

Por Felipe Branco Cruz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 nov 2021, 18h39 - Publicado em 29 nov 2021, 18h08

“Eu o veria tocando piano por uma hora. Ele é incrível”, diz Ringo Starr ao notar Paul McCartney dedilhando as primeiras notas de Let It Be, composta dias antes dentro de um imenso e nada aprazível galpão dos estúdios Twickenham, nos arredores de Londres. A frase é dita meio que displicentemente, durante uma conversa enfadonha sobre a chegada da vida adulta para os Beatles (na época, eles estavam com quase 30 anos), travada com o cineasta Michael Lindsay-Hogg. Naquele mesmo momento, John Lennon discute a possibilidade de fabricação de um tipo de plástico transparente para ser usado em um hipotético cenário para um futuro grande show de retorno dos Beatles aos palcos (que nunca aconteceu). Num outro canto, George Harrison, impassível, arranha algumas notas inaudíveis na guitarra. 

Com quase sete horas de duração e dividida em três episódios, a série documental Beatles: Get Back, dirigida por Peter Jackson e já disponível na Disney+, é repleta de lances mágicos como esse, mas que se perdem em meio a intermináveis discussões comezinhas que os Beatles e todo seu staff travam durante grande parte das filmagens. Encontrar momentos sublimes como o comentário de Ringo para Paul é quase como um trabalho de garimpo insano, que só os mais maníacos pela banda conseguirão suportar. Se cochilar, perdeu. 

Captadas originalmente em janeiro de 1969 por Michael Lindsay-Hogg, as cenas de início iriam ilustrar um documentário sobre a gravação do álbum Let It Be e o aguardado retorno da banda aos palcos – o quarteto não fazia shows desde 1966. Mas deu tudo errado. Ao final, Lindsay-Hogg percebeu que não tinha material para um documentário, apenas longas e intermináveis discussões que não levavam a lugar nenhum. Resultado: para deixar o filme minimamente interessante, ele pegou apenas as brigas e discussões e transformou as mais de 60 horas de imagens brutas e 150 horas de áudio em 1h30 de dor e sofrimento. Enfim, um melancólico epitáfio – e por muitos anos visto como definitivo – de uma das maiores bandas de rock da história. 

Beatlemaníaco assumido, Peter Jackson, diretor da trilogia O Senhor dos Anéis, pediu à Apple Records acesso àquele material e iniciou um hercúleo trabalho de assistir às cenas guardadas em um cofre havia mais de 50 anos. Sua ideia era lançar um documentário nos cinemas, com pouco mais de 2 horas de duração, mostrando tudo o que Lindsay-Hogg deixou de fora, mas o projeto foi adiado em decorrência da pandemia. De volta à sala de edição, Jackson optou pelo streaming. Agora, sem as amarras dos limites de duração dos filmes para o cinema, ele pôde ampliar o projeto para quase 7 horas de duração. A ideia de Jackson passou a ser, portanto, não deixar de fora nada que fosse minimamente importante. Sua máxima era: “Qualquer coisa que eu não inclua agora vai voltar para o cofre e ficará guardada por outros 50 anos”.

A partir deste raciocínio, é fácil entender as escolhas editoriais que Jackson tomou ao fazer a série – embora o resultado não seja nada fácil de assistir para quem não for minimamente integrado do universo dos Beatles. Com formato quase de um reality show sem edição, o documentário se exime de dar explicações sobre o que está acontecendo. Não há nenhuma entrevista com os envolvidos naquelas cenas (ok, muitos já morreram) ou qualquer contextualização da história. Como resultado, a edição fica arrastada e modorrenta, às vezes dando vontade de puxar um ronco.

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É como Paul McCartney descreveu em uma entrevista recente: “Você se sente uma mosquinha na parede”. O problema é que não há nada mais entediante do que acompanhar uma banda no estúdio, ainda que essa banda sejam os Beatles. Mesmo para quem estava lá pessoalmente era difícil. Em dado momento, Paul toca The Long and Winding Road enquanto sua esposa Linda e a esposa de John, Yoko Ono, conversam e tricotam alheias ao fato. Peter Jackson abdicou, portanto, de colocar qualquer ponto de vista ou tirar alguma conclusão daquilo tudo. Talvez com medo de incorrer na mesma mão pesada de Lindsay-Hogg, optou por ficar em cima do muro. 

A sensação é de que Peter Jackson não fez um documentário e, sim, um documento histórico, revelando ao mundo as imagens brutas daquelas sessões de gravações de janeiro de 1969, deixando que outros pesquisadores, no futuro, se debrucem sobre elas. Em entrevista a VEJA, Jackson afirmou que preferiu fazer assim e revelou que o registro cru e definitivo daquele período foi perturbador até para Paul McCartney e Ringo Starr. “Eles têm noção da importância histórica das filmagens e que não se trata mais de proteger a imagem imaculada da banda em detrimento desta ou daquela opinião. Não há vilões. Estão lá quatro caras legais que não têm nada a esconder”, diz ele.

Por outro lado, ele não decepciona em nada na parte técnica. As imagens e áudios brutos foram restauradas em alta-resolução. Jackson usou toda a expertise adquirida no documentário Eles Não Envelhecerão, em que restaurou imagens em preto e branco da I Guerra Mundial, para recuperar também as cenas dos Beatles nos estúdios. O que se vê, portanto, são imagens com uma nitidez e cores surpreendentes. Além disso, o som foi remasterizado de um modo impressionante, capaz de transportar o espectador para dentro do estúdio. 

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Se a edição não ajuda, Get Back se salva graças a detalhes reveladores. Acostumados desde cedo à fama, os quatro integrantes mudavam de comportamento diante das câmeras. Ciente disso, Lindsay-Hogg não poupou esforços para captar os músicos da maneira mais espontânea possível. Em uma cena, ele próprio explica o uso de microfones do tipo boom. “São para gravar as conversas secretas”, confidencia. E, de fato, é isso mesmo que ele faz. Uma das estratégias era deixar a câmera gravando antes de os Beatles entrarem no estúdio. Eles notavam a presença dela, mas, como não havia ninguém operando, logo assumiam que estava desligada. O trabalho de Jackson foi encontrar esses momentos. E há vários deles. Desprovidos da carapuça de astros do rock, eles se mostravam mais relaxados. Lindsay-Hogg escondeu, inclusive, microfones nos vasos de flores do refeitório para gravá-los secretamente. Jackson localizou esses áudios e revelou, pela primeira, vez o bate-papo íntimo que Lennon e McCartney travaram no dia em que George Harrison saiu da banda. 

Outra técnica sacada com maestria por Jackson foi a de utilizar inteligência artificial para separar o som dos instrumentos das conversas que os Beatles travavam durante os ensaios. Para evitar que Lindsay-Hogg gravasse suas conversas, John e Paul tocavam de maneira desconexa enquanto conversavam, cientes de que suas vozes seriam abafadas pelo barulho dos instrumentos. Jackson desenvolveu, então, uma técnica batizada de demixing. Ele “ensinou” a inteligência artificial a distinguir o som dos instrumentos das vozes das pessoas. Pela primeira vez, portanto, foi possível descobrir o que eles conversaram nesses momentos – algo que nem Lindsay-Hogg conseguiu captar no passado. 

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Bastidores do Último show dos Beatles, em janeiro de 1969, no telhado da Apple Records, em Londres
Bastidores do Último show dos Beatles, em janeiro de 1969, no telhado da Apple Records, em Londres (//Reprodução)

Embora John Lennon anos depois tenha considerado aquelas sessões de gravação como as mais miseráveis do planeta, muita coisa boa surgiu dali. Durante aquele período, os Beatles tocaram, por exemplo, doze canções que foram gravadas em Abbey Road. Há ainda instantes em que eles tocam canções que nunca foram gravadas, como Just Fun, Thinking of Licking, Song of Love, Won’t You Please Say Goodbye, My Imagination, You Wear You Women Out, Madman e Too Bad About Sorrow, e também outras que só seriam lançadas nas carreiras-solo de John, Paul, George e Ringo. Para os fãs, é um deleite ver os Beatles tocando Gimme Some Truth, gravada por Lennon, All Things Must Past, de Harrison (e que chegou a ser cotada para entrar em Let It Be), e Another Day, de Paul McCartney. 

Ao focar no fã mais “hard user” dos Beatles, Peter Jackson acerta no alvo. Mas o preço disso é aborrecer quem esperava não só um apanhado solto de memorabilia da banda, mas um documentário afiado – capaz de informar, oferecer um ponto de vista original sobre os Beatles e, bem, entreter. Se o primeiro e o segundo episódios são lastimáveis nesse sentido, o último ato é o mais palatável para o público que não é cegamente obcecado pelo quarteto de Liverpool. É nesse último episódio que Jackson exibe, pela primeira vez na íntegra, o último show ao vivo dos Beatles, no topo do edifício da Apple, na Savile Row, em Londres. São mostrados os bastidores, os preparativos, a apresentação (inclusive com os Beatles repetindo as músicas que tocaram errado) e o pós-show. Um deleite para quem se acostumou e ver apenas algumas poucas e raras cenas daquela apresentação. Para quem ameaçou dormir após as primeiras cenas de Get Back, fica dica: pule as mais de 4 horas dos dois primeiros episódios e vá direto ao filé mignon.

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