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Peter Jackson sobre fim dos Beatles: ‘Yoko foi retratada de forma injusta’

O cineasta lança um documentário revelador sobre o quarteto de Liverpool, com nova percepção em relação ao rompimento mais devastador da história da música

Apresentado por Atualizado em 19 nov 2021, 16h08 - Publicado em 19 nov 2021, 06h00
Peter Jackson
Peter Jackson – (James Brickwood/Fairfax Media/Getty Images)

Em janeiro de 1969, o cineasta americano Michael Lindsay-Hogg registrou os bastidores das gravações daquele que viria a ser o último álbum dos Beatles, Let It Be — lançado no ano seguinte, acompanhado de um documentário de mesmo nome. A ideia do diretor era testemunhar o quarteto, formado por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, em plena atividade criativa. O resultado, no entanto, foi devastador: discussões intermináveis e um clima patente de discórdia davam a deixa de que o fim da banda estava próximo. O filme se tornou o epitáfio do quarteto de Liverpool — separação que, até hoje, exibe suas feridas. Fã do grupo, o oscarizado cineasta neozelandês Peter Jackson, de 60 anos, aclamado pela trilogia O Senhor dos Anéis, se dispôs a rever as cinquenta horas brutas daquelas gravações. Isolado em seu estúdio durante a pandemia, Jackson transformou o vasto material na minissérie Beatles: Get Back, dividida em três partes e com mais de seis horas de duração, que estreia no próximo dia 25 no Disney+. A conclusão do diretor ao abrir o baú inédito: o clima em nada se parecia com a edição conhecida. Segundo ele, a banda estava feliz e não dava indícios de que iria se separar. “Foi como entrar numa máquina do tempo”, disse Jackson em entrevista a VEJA, por videoconferência. Confira a seguir os melhores trechos.

Mais de cinquenta anos após o fim, os Beatles continuam a surpreender com novas descobertas. Como foi assistir a esse material inédito? Sinceramente, não acho que exista outra banda de rock que tenha sido filmada de maneira tão íntima e honesta quanto os Beatles foram nessas gravações feitas por Michael Lindsay-Hogg. É possível entender melhor a personalidade de cada um, e quem são os seres humanos por trás dos ídolos. Resumindo, são quatro amigos divertidos, bem diferentes dos personagens clichês de filmes sobre a banda, como Os Reis do Iê Iê Iê (1964) ou Help! (1965).

O que esperava encontrar quando deparou com mais de cinquenta horas de vídeo bruto do documentário original? Como fã dos Beatles, durante décadas eu acreditei que o período de gravação de Let It Be foi horrível. A ideia geral é a de que eles não se suportavam. Eu esperava encontrar imagens terríveis de brigas. Mas o que vi foi algo completamente diferente. De maneira alguma parecia uma banda que estava prestes a se separar. Foi uma surpresa e foi fantástico. As pessoas vão se deslumbrar com quanto John Lennon era engraçado, e não aquele cara carrancudo que aparecia nas capas das revistas dos anos 70. Ele era um verdadeiro pateta.

Depois do sucesso de O Senhor dos Anéis, o senhor se transformou em um cineasta que pode fazer o que quiser em Hollywood. Por que optou então por um projeto sobre os Beatles? Encontrei-me com os executivos da Apple Records em Londres, pois eles queriam me convidar para participar de um projeto completamente diferente, sobre algum tipo de realidade virtual para uma exposição dos Beatles — que foi engavetado. No final da reunião, perguntei se as imagens brutas feitas por Lindsay-­Hogg tinham sobrevivido e disse que adoraria fazer um documentário com elas. Eu me ofereci como voluntário, não foi algo planejado. Nos meses seguintes, visitei a Apple todos os dias e assisti às cinquenta horas de vídeo bruto e ouvi mais de 130 horas de áudio. Exceto aquele momento em que George Harrison anuncia a saída da banda, não ouvi nenhuma outra briga. Não há gritos nem raiva. Dias depois, ele ainda volta para as gravações.

“Yoko foi retratada de uma forma injusta pela imprensa. O rompimento dos Beatles foi causado por uma disputa de negócios. Isso abriu uma ferida entre eles”

Quais foram as reações de Paul McCartney e Ringo Starr, os dois únicos sobreviventes da banda, e das viúvas Olivia Harrison e Yoko Ono após assistirem ao documentário? Foram bastante favoráveis, embora eles ainda não tenham visto o corte final. Eu esperava que me pedissem para retirar algumas cenas porque se tratava de uma filmagem muito crua e honesta. Achei que não fossem gostar. Mas não reclamaram de nada. O que me disseram foi que, embora fosse muito difícil e estressante rever aquelas cenas, tratava-se de um registro definitivo do período. Eles têm noção da importância histórica das filmagens e que não se trata mais de proteger a imagem imaculada da banda em detrimento desta ou daquela opinião. Não há vilões. Estão lá quatro caras legais que não têm nada a esconder.

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Por anos, Yoko Ono foi apontada como a vilã que causou o fim dos Beatles. Uma especulação como essa teria espaço hoje ou seria considerada machista? Não acho que ela tenha sido responsável pelo fim dos Beatles. Yoko foi retratada de uma forma injusta, com notícias muito desagradáveis publicadas pela imprensa britânica da época, dominada por ta­bloi­des. O rompimento dos Beatles foi causado por disputa de negócios. Isso abriu uma ferida entre eles. Como banda, eles tinham de concordar com tudo ou nada acontecia. Quando as disputas comerciais aconteceram, houve um racha de três contra um: Paul não quis assinar com o empresário Allen Klein, enquanto os outros quiseram.

Acredita que a separação deles poderia ter sido evitada? Uma coisa curiosa que notei foi que a memória das pessoas envolvidas naquele período é contaminada pelo documentário de Michael Lindsay-Hogg, que preferiu mostrar apenas as cenas de tensão da banda. Os Beatles se separaram alguns meses depois e deve ter sido o pior momento da vida deles até então. Paul me disse que, após ver as cenas brutas que resgatei, ele percebeu que aquele período não tinha sido tão ruim assim. A memória dele era a memória do documentário. Foi uma experiência bastante catártica para ele e também para o Ringo.

Como diretor de blockbusters, acostumado em ver seus filmes nas telas grandes, como reagiu ao saber que o documentário previsto para estrear no cinema iria direto para o streaming? Acho que sempre haverá filmes para as telas grandes. Fiquei feliz que conseguimos fazer esse documentário no streaming porque no cinema ele teria pouco mais de duas horas e agora terá mais de seis. Seria bom exibi-lo nos cinemas, mas não foi assim que as coisas aconteceram. Acho que o cinema vai se recuperar no pós-pandemia. As pessoas simplesmente precisam do cinema. Se você é adolescente, não vai querer ficar sentado na poltrona vendo TV com seus pais.

O cinema hoje se tornou dependente dos filmes de super-heróis para garantir grandes bilheterias. O senhor está entre os que veem isso como um problema ou um fato positivo? Nunca fiz um filme de super-herói. Acho que isso responde à sua pergunta, não é? Quer dizer, nunca tive nenhum interesse por esse tipo de filme. Sim, estou um pouco deprimido com o fato de que os cinemas se tornaram uma indústria de franquias de super-heróis. Espero que seja apenas uma fase passageira. Não me importo se os filmes de super-heróis continuarem sendo feitos para sempre, mas, no momento, eles não estão dando espaço a nenhum outro filme nas salas. Eu espero que esses dias passem e que haja oportunidades para o cinema se diversificar novamente.

Sua filmografia conta com superproduções fantasiosas, como King Kong, O Hobbit e, claro, O Senhor dos Anéis. Por que esse gosto particular? Todos os filmes de que eu gosto e que me impactaram no passado — e também os filmes que fiz — são escapistas. Alfred Hitchcock dizia: “Alguns filmes são fatias de vida, os meus são fatias de bolo”. O que eu amo nessa frase é que não vou a cinema para ver uma versão da vida real.

Como assim? Um filme não precisa ser fantasia ou ficção científica. Pode ser qualquer coisa que simplesmente transporte você para outro mundo. Ainda me lembro de ser completamente transportado para outro lugar pelos filmes na juventude. Hoje, isso não acontece mais comigo com tanta frequência. Posso assistir a um filme e me divertir, mas não me arrebata. Gostaria de voltar a ser criança com 7 ou 8 anos e experimentar a magia do cinema novamente. Mas as crianças estão aí, e elas vão experimentar isso também, espero.

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Seus dois trabalhos mais recentes são documentários. Além dessa série sobre os Beatles, o senhor assinou Eles Não Envelhecerão (2018), sobre a I Guerra Mundial. Ambos abordam a vida real. Por que essa mudança de foco? Não foram projetos planejados. As coisas simplesmente aconteceram. Sempre me interessei pela I Guerra Mundial, então, o filme Eles Não Envelhecerão era algo que eu queria fazer porque desejava restaurar as filmagens antigas do conflito. Tinha um forte apelo para mim. Eu também sou fã dos Beatles há mais de quarenta anos. Jamais diria não a um projeto como esse. Foi o trabalho dos sonhos, mas não é algo que eu vá continuar fazendo, porque não existem outros materiais como esse por aí. São cenas que ficaram guardadas em um cofre por cinco décadas. É um projeto único.

“Estou um pouco deprimido com o fato de que os cinemas se tornaram uma indústria de franquias de super-heróis. Espero que seja apenas uma fase passageira”

Como foi trabalhar nesse filme durante a pandemia, especialmente na Nova Zelândia, onde a vida voltou ao normal mais rapidamente do que ao redor do mundo? Não há nada de bom na pandemia. Muitas pessoas morreram. Uma tristeza sem tamanho. Porém em decorrência da pandemia pude ampliar o documentário para ficar com seis horas de duração. Como eu não tinha mais nenhum outro filme para trabalhar, ia todos os dias à sala de edição e me encontrava com os Beatles. Logo, passei a pandemia recluso, mas acompanhado dos Beatles. Foi uma terapia. Em meio à tristeza absoluta da pandemia, os Beatles conseguiram me manter são e, dentro do possível, feliz.

O senhor era uma criança quando Let It Be foi lançado. Qual é a sua primeira memória dos Beatles? Não lembro exatamente como eu os conheci. Mas creio que devo ter ouvido na infância porque sou de 1961. Provavelmente ouvi no rádio e vi na TV, como a maioria das pessoas. Meus pais não tinham nenhum dos álbuns dos Beatles. Eles não compravam esses tipos de disco. Quando eu tinha 12 ou 13 anos, em 1973 ou 1974, economizei dinheiro para comprar um aeromodelo. Fui à loja com meu pai comprar o tal avião. Passamos antes em frente a uma loja de discos e na vitrine eu vi os dois álbuns dos Beatles — aqueles com as capas vermelha e azul — em que eles aparecem em uma escada (coletâneas batizadas de Vermelho e Azul, respectivamente). Pedi ao meu para pai entrar na loja e gastei cada centavo que tinha guardado para comprar o aeromodelo naqueles discos. Nunca mais comprei o avião.

Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765

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