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De Machado de Assis a Shakespeare: quando a adaptação diminui obras clássicas

Enquanto grandes escritores da literatura brasileira terão obras simplificadas para atingir adultos que não leem, editoras propõem releituras criativas, que apresentam autores a jovens leitores, sem disfarçar sua originalidade

Por Meire Kusumoto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 12 Maio 2014, 18h22

Machado de Assis, carioca nascido há 174 anos e morto há 105 anos, quem diria, está no centro de uma controvérsia literária em pleno século XXI. O colega cearense José de Alencar (1829-1877) também não conseguiu se salvar. Não foram eles, porém, que se colocaram em tamanho bafafá: foi com estranhamento que crítica e público receberam a notícia de que a escritora paulista Patrícia Engel Secco, com a ajuda de uma equipe, simplificou obras dos dois autores clássicos para facilitar sua leitura.

O projeto que alterou partes do conto O Alienista, publicado por Machado em 1882 como parte do livro Papéis Avulsos, e do romance A Pata da Gazela, publicado por Alencar em 1870, recebeu a aprovação do Ministério da Cultura para captar recursos com a lei de incentivo para imprimir e distribuir, gratuitamente, 600 000 exemplares por meio do Instituto Brasil Leitor a partir de junho. Os livros, já disponíveis na internet, apresentam substituição de palavras e expressões com registro simplificado, como, por exemplo, a troca de “prendas” por “qualidades” em O Alienista.

“O público alvo do projeto é constituído por não leitores, ou leitores novos, jovens e adultos, de todos os níveis de escolaridade e faixa de renda”, afirmou Patrícia em entrevista ao site de VEJA. Autora de mais de 250 títulos, em sua maioria infantis, ela diz que encontra diariamente pessoas que não leem, mas que poderiam se interessar pelo universo de Machado e Alencar se tivessem acesso a uma obra facilitada. “As adaptações têm sido, desde sempre, um grande negócio para a indústria editorial. Acredito que elas aproximam o leitor novo ao texto literário, e que obras mediadas por meio desse mecanismo são efetivos instrumentos de acesso à literatura”, diz.

No entanto, o modelo de adaptação que Patrícia e sua equipe, formada por profissionais do mercado editorial, utilizaram nas duas obras é diferente do que se costuma ver, por exemplo, em séries de obras clássicas destinadas ao público infantojuvenil. As estruturas e as histórias de O Alienista e A Pata da Gazela foram mantidas e só existe a substituição de palavras e expressões das obras, ao passo que em adaptações comuns ao mercado editorial é feita uma reformulação completa da forma como o texto é apresentado, é uma recriação do texto clássico no contexto contemporâneo.

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Exatamente por se distanciar desse modelo, legitimado pela academia literária, a iniciativa de Patrícia fez subir a sobrancelha de alguns professores brasileiros, ou por espanto ou por indignação. O professor de literatura brasileira da USP, Alcides Villaça, foi um dos primeiros a dar sua opinião, mostrando que se encaixava mais no segundo caso, o dos indignados. Machado de Assis não é pra ser ‘gostado’ como sorvete de limão ou chocolate. Machado é um problema para qualquer criatura inteligente (por favor, tente se preocupar). Ele relativiza os valores que servem de colchão pras nossas vidas. Ele aprendeu na prática (era mulato, meu bem) que é duro nascer pobre e sem voz”, escreveu o professor em seu perfil no Facebook.

“Saiba que os jovens leitores para quem apresento, como professor, os textos de Machado, se revitalizam com essas questões (que ele aborda) e agradecem pelo fato de que existe um artista que lhes dá forma e expansão. Caso queira aprender a redigir sem ‘dificultação’, sugiro começar com a fórmula sujeito + verbo + complemento, até atingir outras sequências possíveis e enfim começar a ler — é o que te desejo — um texto do verdadeiro Machado de Assis. Do autêntico. Qualquer falsificação jogue imediatamente no lixo”, finaliza Villaça o sarcástico desabafo.

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Para o professor de literatura brasileira da Unesp, Benedito Antunes, a discussão estabelecida após a apresentação do projeto de Patrícia é válida e importante. “Mas não acho justificável desconstruir o estilo do autor. É como se ela estivesse traduzindo a obra, mas dentro da própria língua”, disse Antunes ao site de VEJA. Segundo o professor, o texto ainda pode causar dúvidas no leitor. “A obra estará alterada, mas vai se passar pela verdadeira. Você vende a imagem de que está lendo Machado de Assis, mas estará lendo outra coisa.”

Para Antunes, a formação de leitores é um processo complexo, que não pode ser resolvido com a simplificação de obras clássicas. “Não é facilitando um texto que você facilita a formação de leitores. A ideia é propor inicialmente leituras mais próximas do público. Naturalmente, ele vai se encaminhar para os clássicos originais um dia.”

Após observar a repercussão do projeto, Patrícia afirmou que há certo purismo literário naqueles que a criticaram. “Trata-se de uma disputa entre o purismo e a democratização da leitura. As redes sociais estão cheias de exemplos de prejulgamentos e linchamentos baseados em equívocos de interpretação”, disse.

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Adaptações – A adaptação de obras clássicas é prática corrente e aceita dentro do campo literário, principalmente quando verte originais para livros destinados ao público jovem. O professor da Unesp, Benedito Antunes, lembra que até mesmo Monteiro Lobato adaptava muitas histórias clássicas nos contos que Dona Benta apresentava à turma do Sítío do Picapau Amarelo.

“Ele citava o grego Esopo, o francês Jean de La Fontaine, mas criava obras diferentes, com Dona Benta comentando, Emília alterando partes. Ele mudava o contexto, mas não fugia à essência das fábulas”, afirma Antunes. O professor da USP, Alcides Villaça, concorda que as adaptações podem coexistir com a obra original. “Adaptações correm em paralelo (distanciado, é claro) com o original. Li várias quando menino”, disse ao site de VEJA.

Para ele, até mesmo as adaptações mais ousadas, como as que apresentam histórias clássicas em forma de quadrinhos, são válidas. “Histórias em quadrinhos têm linguagem própria, e são válidas como tais. De forma alguma substituem o texto integral de uma narrativa. O mesmo ocorre com outros formatos: adaptação para TV, cinema, utilização em canções, em videoclipes etc.”

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Capa de 'Hamlet' da série 'Mangá Shakespeare', da editora Galera Record
Capa de ‘Hamlet’ da série ‘Mangá Shakespeare’, da editora Galera Record (VEJA)

A série Mangá Shakespeare, editada pelo Grupo Record, por exemplo, dá novo tratamento às clássicas peças de teatro do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616). O texto é original, do século XV e XVI, cortado, eliminando descrições que são resolvidas pelas ilustrações e vertido apenas para a língua portuguesa pelo escritor e tradutor Alexei Bueno. As imagens, são feitas com inspiração nas histórias em quadrinhos japonesas, os mangás. A série, com cinco volumes publicados, vendeu cerca de 33.000 livros até o momento.

Já a coleção Save the Story, também da Record, traz clássicos recontados por outros escritores. Não é uma mera adaptação da história, é uma versão a partir dos olhos de quem leu e gostou de um livro. Umberto Eco, por exemplo, reconta o romance Os Noivos, do poeta italiano Alessandro Manzoni. Com quatro volumes publicados, a coleção vendeu aproximadamente 39.000 exemplares até agora.

De acordo com a editora executiva da Galera Record, Ana Lima, a intenção é também fazer com que o leitor recorra ao livro original, eventualmente. “Torço muito para que os leitores, depois dos mangás, leiam não só as peças, mas os sonetos de Shakespeare e também outros dramaturgos e poetas”, afirmou.

Intenção parecida tem o gerente editorial dos paradidáticos das editoras Ática e Scipione, Paulo Verano. As casas editoriais têm dois projetos que adaptam histórias clássicas para o público infantil e juvenil. Na série Reencontro, autores da literatura brasileira se encarregam de recontar livros como O Mágico de Oz, de L. Frank Baum, e Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Já na coleção Clássicos Brasileiros em HQ, Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Raul Pompeia são alguns dos nomes que têm suas obras vertidas para o mundo dos quadrinhos.

Para Verano, as adaptações são uma forma de apresentar o autor e sua história ao público jovem, sem que elas substituam a obra original. “Quando as crianças se tornarem mais velhas, elas já terão subsídios para entrar nas obras completas, pois já terão lido as adaptações. É uma porta de acesso para o texto na íntegra”, afirma.

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