Em 2019, quando a polonesa Olga Tokarczuk venceu o Nobel de Literatura ao lado do austríaco Peter Handke, a repercussão de sua obra foi ofuscada por um escândalo na Academia Sueca. O imbróglio envolvendo uma jurada da premiação e seu marido, Jean-Claude Arnault, preso por ter assediado dezoito mulheres ao longo de duas décadas, levou ao cancelamento da edição de 2018 do Nobel — justamente o ano em que a autora polonesa ganharia, sozinha, a honraria. Uma pena, já que seus livros são interessantíssimos. Com o lançamento de Correntes, cria-se nova oportunidade para conhecer a ótima Tokarczuk (leia-se “Tokártchuk”), uma das escritoras que melhor exploram um recurso peculiar para dialogar com seu tempo: a “autoficção”, em que vivência pessoal e ficção se fundem.
O livro é composto de 116 capítulos, entre relatos, comentários e contos que formam um diário de viagem variado, ainda que com amarração meio frouxa. O roteiro passa por diferentes museus de anatomia e medicina na Europa e nos Estados Unidos. A narrativa é intercalada de observações sobre o ato de viajar, pessoas que a autora encontra no caminho, perrengues, surpresas agradáveis. Descrições dos complexos e milenares processos de preservação de órgãos, tecidos e cadáveres mesclam-se, ainda, com tramas ficcionais. Assim explicada, a obra aparenta ser uma miscelânea. Não é.
Quando ela enviou os originais, o caráter fragmentário da narrativa suscitou dúvidas em seus editores, que pensaram se tratar de um rascunho vitimado por confusões no corta e recorta do “Ctrl c” e “Ctrl v”. A leitura atenta, porém, revela que há concatenação entre os textos. E este é um dos méritos de Tokarczuk: conseguir misturar temas aparentemente isolados (como filosofia, higiene pessoal e Borges, por exemplo) de uma maneira inventiva, inteligente e cativante.
Livro – Sobre os ossos dos mortos
Juntamente com a descrição de suas experiências reais, a escritora constrói um itinerário fantástico. Sua cartografia distancia-se do óbvio e a autora (ou seu alter ego narrativo) revela-se uma pessoa que só se completa e se satisfaz viajando. O título original, Bieguni, refere-se à crença do catolicismo ortodoxo de que o constante movimento é uma forma de proteção contra o mal. Na tradução, “Correntes” deriva do correr dos fluxos de água. “Fluidez, mobilidade, ilusão — essas são precisamente as qualidades que fazem de nós civilizados. Os bárbaros não viajam, eles simplesmente seguem para os seus destinos ou os invadem”, escreve Tokarczuk.
Os contos no diário são ótimos, como o caso de um personagem que abandona sua vida previsível num “daqueles países insípidos, planos e comunistas” para ser marinheiro e viajar. Ou a história do médico e anatomista flamengo Philip Verheyen, que perdeu uma perna (uma amputação no século XVII era quase uma sentença capital), mas não se afastou de sua investigação do corpo humano. Ainda que por caminhos distintos, Tokarczuk, sua narradora, os anatomistas e os viajantes procuram uma única coisa: a si mesmos.
Assim como o norueguês Karl Ove Knausgard, a anglo-canadense Rachel Cusk e o brasileiro Julián Fuks, a autora de 59 anos mistura sua vida com a ficção. A volta desse recurso — que não é novo na literatura — e o interesse que desperta são compreensíveis num mundo inundado de fake news, e com milhões de pessoas produzindo autoficção nas redes. Qual o limite entre a realidade vivida e a retratada no Instagram, Facebook ou TikTok? Muitas pessoas fracassam tentando ser o que querem representar. Tokarczuk triunfa.
Publicado em VEJA de 14 de julho de 2021, edição nº 2746
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