O anglo-indiano Ahmed Salman Rushdie, brutalmente esfaqueado nesta sexta-feira em Nova York, já era um escritor respeitado antes do terremoto colossal causado pela publicação de Os Versos Satânicos, em 1988. Mas, depois dessa obra, ele virou uma personalidade global e um alvo ambulante. O livro provocou fortes reações em países muçulmanos ao apresentar uma nova versão para uma lenda envolvendo o profeta Maomé. De acordo com este mito — não há comprovação histórica dos fatos — Maomé teria incluído versos pagãos no Alcorão, a Bíblia dos muçulmanos. Depois, o próprio profeta revogou os tais versos afirmando que sua inclusão tinha sido obra do diabo; daí a designação “versos satânicos”. No livro de Rushdie, ele reconta essa lenda e credita os versos ao Anjo Gabriel, que os teria sussurrado a Maomé.
Essa passagem – parte importante, mas ínfima no livro – foi responsável por despertar a ira de grande parte da comunidade islâmica. A obra foi proibida em muitos países com grandes populações muçulmanas, incluindo Irã, Índia, Bangladesh, Sudão, África do Sul, Sri Lanka, Quênia, Tailândia, Tanzânia, Indonésia, Cingapura e Paquistão. Em 14 de fevereiro de 1989, uma fatwa (um pronunciamento com peso de lei em países islâmicos teocráticos) ordenando a execução de Rushdie foi proclamada na Rádio Teerã pelo Aiatolá Khomeini, o líder supremo do Irã na época. Uma recompensa foi oferecida pela morte do escritor e, desde então, ele foi acompanhado por seguranças.
Em 1989, o terrorista Mustafa Mahmoud Mazeh se explodiu acidentalmente em um hotel no centro de Londres. Ele preparava um livro-bomba que seria usado para presentear e matar Rushdie. Em um santuário para Mazeh, num cemitério de Teerã, há a inscrição: “O primeiro mártir a morrer em uma missão para matar Salman Rushdie”. Dois anos depois, em 1991, Hitoshi Igarashi, tradutor do livro para o japonês, foi assassinado a facadas no Japão. A investigação apontou que a fatwa motivou o ataque. Posteriormente, em 2010, a organização terrorista Al Qaeda publicou uma lista de “inimigos do Islã” que deveriam ser mortos. Entre outros nomes, constavam o de Rushdie e o do cartunista francês Stéphane “Charb” Charbonnier, uma das onze pessoas assassinadas em janeiro de 2015 em um ataque terrorista ao semanário satírico Charlie Hebdo.
O livro Os Versos Satânicos tem pouca relação com religião e várias situações cômicas. Retrata a história fantástica de dois homens que sobrevivem a um atentado terrorista no avião em que viajavam. A aeronave explode, mas ambos são expelidos com vida e aterrissam na careta Inglaterra de Margaret Thatcher. Lá, eles se transformam em um anjo e um diabo, iniciando um jogo de contrastes na tentativa de se integrarem à sociedade britânica. Um é apolíneo, outro é dionisíaco; um é fortemente apegado às suas origens, outro quer conquistar a cidadania britânica rapidamente. Para falar sobre pertencimento e integração social, a história transita entre dilemas humanos em torno de como os conceitos bem e mal (ou certo e errado) podem ser dúbios. No fundo, é uma obra profundamente autobiográfica, com referências aos questionamentos do autor sobre si próprio e suas origens. Nascido em Bombaim (atual Mumbai), na Índia colonial, Rushdie é filho de um advogado e uma professora. Seus pais o educaram em colégios britânicos e ele cursou faculdade em Cambridge, uma das mais respeitadas universidade inglesas. Após morar brevemente no Paquistão, passou a residir em Londres por muitas décadas.
Depois de toda perseguição ao autor e à obra, Os Versos Satânicos se transformou em um best-seller global e Rushdie virou um ícone da liberdade de expressão e da defesa do livre pensamento. Seus livros posteriores passaram a ser traduzidos para dezenas de idiomas e lidos mundo afora. Rushdie sempre se declarou ateu, mas já escreveu que considerava Maomé “um dos grandes gênios da história mundial”. Ele sustentou que seu romance não é “um livro anti-religioso, mas uma tentativa de escrever sobre a imigração, suas tensões e transformações”. A triste ironia nas perseguições e ataques ao escritor está no fato de seus agressores — muito provavelmente — jamais terem lido Os Versos Satânicos. Caso tivessem, concordariam com o autor.