Há um personagem fascinante, de quem pouco se fala, na aventura da arte moderna do fim do século XIX e início do século XX: Ambroise Vollard. Colecionador atento, ele foi o primeiro a prestar atenção em nomes como Pierre-Auguste Renoir, Paul Cézanne, Paul Gauguin, Vincent van Gogh e Pablo Picasso. As exposições inaugurais desse elenco tiveram o olhar visionário e a carteira de Vollard. Em 1895, com apenas 29 anos de idade, numa temporada como qualquer outra de sua trajetória, ele expôs Gauguin em março, Van Gogh em maio e Cézanne em setembro.
Em 1901, apresentou ao mundo telas de inesperada tonalidade azul de um certo pintor malaguês que reescreveria a história da estética. De brincadeira, os amigos artistas buliam com a sonoridade de seu sobrenome. Um apelido jocoso foi inventado para aquele homem fundamental de uma geração sem lenço nem documento: vole-art, ou rouba-arte. Era conhecido pelos ataques de mau humor e pelos acessos repentinos de sono. Alto e forte, macambúzio, “parecia melancólico”, na definição da escritora Gertrude Stein, porto seguro parisiense de toda a turma do pincel.
Vollard morreria em julho de 1939, aos 73 anos, em um acidente de carro, de um modo que só ele poderia morrer — numa curva de estrada a caminho de Paris foi atingido na nuca por uma escultura de bronze que levava a bordo. Sem filhos — sabia-se apenas de uma amante que sumiu do mapa —, deixou como legado cerca de 6 000 obras, que guardava até debaixo da pia da cozinha ou atrás da porta do banheiro. No mês passado, em mais um fascinante episódio de uma aventura inigualável, ele voltou a fazer barulho. Um tribunal de Paris ordenou que o Museu d’Orsay restitua aos herdeiros de Vollard — descendentes de seus irmãos — quatro obras-primas de Renoir, Cézanne e Gauguin, que foram roubadas durante a II Guerra Mundial e vendidas aos nazistas. O museu devolverá duas pinturas de Renoir, uma paisagem marítima de Guernsey de 1883 e um estudo para o clássico Julgamento de Paris, de 1908; a Natureza Morta com Mandolim, de Gauguin, feita em 1885, e uma vegetação rasteira de Cézanne, terminada em 1892. Não haverá reclamação na Justiça, agora, depois de dez anos de queda de braço. “Ainda que pareça normal o Estado verificar com cautela a origem de qualquer obra de arte antes de definir a restituição, o processo demorou tempo demais”, lamenta um dos advogados da disputa, François Honnorat. É cuidado, aliás, que Vollard não tinha, comprador voraz de tudo o que lhe parecia bonito e diferente.
O modernismo deve muito a ele, e ao redor daquela figura desenham-se os dramas de um século embebido de horror. Em 1914, ele foi forçado a fechar sua galeria, com a eclosão da I Guerra. Durante a II Guerra, a coleção foi dispersada. Parte seguiu de navio para os Estados Unidos, parte caiu na mão dos alemães. Ao fim do conflito, muitas telas foram devolvidas à família — uma lista imensa, porém, saiu direto de mãos nazistas para museus, entre eles o d’Orsay. Contudo, como as circunstâncias das transações não eram claras, houve um extenso vaivém jurídico. Além disso, Vollard não era judeu e suas propriedades não foram confiscadas sob as leis raciais promulgadas pela França ocupada pelos alemães, o que adiou o desfecho legal. Mas, enfim, a verdade foi restabelecida — prêmio à delicadeza de um gênio à sombra.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831