Embora o vinho seja consumido há milhares de anos e tenha papel central na trajetória gastronômica de diversas sociedades, foi apenas recentemente que os historiadores passaram a investigar com afinco as origens da domesticação das uvas, as variedades usadas na produção em diferentes regiões e o início da fabricação em larga escala. Graças a tecnologias e métodos modernos, os vestígios arqueológicos se tornaram mais acessíveis, e uma verdadeira revolução começou. Em 2017, os cientistas encontraram na Geórgia os indícios mais antigos da produção da bebida. Há 8 000 anos, os fazendeiros da Idade da Pedra não apenas sabiam cultivar as uvas como já produziam vinho e decoravam potes de cerâmica com cachos da fruta. Agora, um novo estudo foi mais longe: a domesticação da uva, na realidade, é quase tão antiga quanto o cultivo do trigo, grão fundamental na transição de sociedades de caçadores-coletores para agricultores sedentários.
O grupo, bastante diverso, composto de 89 pesquisadores de 23 instituições espalhadas por dezessete países, se reuniu para analisar 3 500 variedades de uva, incluindo mutações da Vitis sylvestris, espécie selvagem que se desenvolveu há 400 000 anos no norte da África e na Eurásia, e diferentes castas de Vitis vinifera, a versão domesticada usada na produção de vinhos. A partir da comparação genética entre elas, conseguiram determinar a trajetória de domesticação das uvas. De forma simultânea, agricultores do Cáucaso, principalmente da Armênia, Azerbaijão e Geórgia, e do Oriente Próximo, região que inclui áreas da Turquia, Síria, Líbano e territórios palestinos, começaram a cultivar as frutas há 11 000 anos, muito antes do que se imaginava. Em pouco tempo, a produção se espalhou pela Europa, Ásia e norte da África.
A trajetória do vinho acompanhou a expansão das primeiras sociedades neolíticas. O estudo mostra que as rotas comerciais da época foram responsáveis por trocas culturais importantes. O ideograma chinês para álcool, por exemplo, é derivado dos garrafões usados no transporte do vinho da Geórgia, conforme revelações publicadas na revista Science.
A análise genômica tem revolucionado os estudos das origens das uvas e da produção de vinho. Em 1993, foi realizado com sucesso o primeiro teste de DNA envolvendo as videiras, e quatro anos depois pesquisadores conseguiram provar que a cabernet sauvignon, principal casta usada nos rótulos de Bordeaux, na França, havia surgido a partir do cruzamento natural entre a cabernet franc e a sauvignon blanc. “Foi uma verdadeira surpresa para o mundo do vinho e, desde então, o estudo das relações entre as diferentes variedades entrou em uma nova era, com a descoberta de outros surpreendentes parentescos”, escreveu a especialista britânica Jancis Robinson no monumental livro Wine Grapes, principal obra de referência sobre as 1 368 castas usadas na produção de vinho ao redor do mundo.
Hoje em dia, sabe-se que muitas das mais importantes uvas, como pinot noir, sauvignon blanc, cabernet sauvignon, cabernet franc, syrah, carménère, syrah, cot (nome original da malbec), chenin blanc e merlot, entre várias outras, descendem de uma única cultivar conhecida como pinot. As novas descobertas têm incentivado o movimento de valorização das castas autóctones, como são chamadas as variedades originárias de diferentes países. Em vez da padronização inspirada nos rótulos franceses e italianos, predominantes no mercado global, há interesse crescente em explorar uvas raras de vários lugares do planeta.
Embora ainda pouco conhecidos no Brasil, os vinhos da Geórgia e da Armênia, nações com produção antiga, começam a ganhar espaço no portfólio dos importadores e atrair a atenção de avaliadores especializados e consumidores ávidos por novidades. São rótulos que despertam os paladares contemporâneos para as surpresas reveladas pelos sabores milenares.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2023, edição nº 2835