Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Cartas expõem visão ácida do mestre Manet sobre Rio do século XIX

Em fevereiro e março de 1849, aos 17 anos, ele esteve no Rio por tempo suficiente para se encantar com a beleza natural da cidade e brincar no Carnaval

Por Diego Braga Norte Atualizado em 18 set 2023, 14h53 - Publicado em 17 set 2023, 08h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Antes de se tornar um pintor mundialmente aclamado, Édouard Manet (1832-1883) passou uma rápida temporada no Brasil. Em fevereiro e março de 1849, aos 17 anos, ele esteve no Rio de Janeiro por tempo suficiente para se encantar com a beleza natural da cidade e brincar no Carnaval. Mas se assustou também com a brutalidade da escravidão. Na época, a então capital do Brasil era a cidade com maior número de escravizados do mundo. O Censo de 1849 aponta que, dos 266 500 habitantes, 110 600 eram cativos, o equivalente a 41,5% da população. Com nova tradução, as cartas que o francês enviou a seus familiares são um testemunho precioso dessa época — e agora encontram-se reunidas no livro Manet no Rio, uma edição fartamente ilustrada com pinturas e desenhos.

    Publicidade

    Manet no Rio

    Publicidade

    É sempre interessante (mas nem sempre agradável) ver o próprio país com olhos estrangeiros, e as observações ficam ainda mais intrigantes quando os gringos são pessoas notáveis. O antropólogo Claude Lévi-­Strauss escreveu em Tristes Trópicos que a Baía de Guanabara parecia uma “boca desdentada”. Albert Camus, deprimido e com enxaquecas quando esteve no Brasil, em 1949, anotou: “Nunca o luxo e a miséria me pareceram tão insolentemente mesclados”. Já a poeta americana Elizabeth Bishop mandou essa: “Se você nunca vê um Picasso autêntico, finge que Portinari é bom — ou se você nunca na vida ouviu boa música, finge que bossa nova é bom e que Villa-Lobos é o maior etc.”. Sim, os olhares de fora podem ser precisos, nada condescendentes e até mesmo cruéis.

    PERSPICAZ - Manet na juventude: o marinheiro frustrado acabaria virando pioneiro da pintura impressionista
    PERSPICAZ – Manet na juventude: o marinheiro frustrado acabaria virando pioneiro da pintura impressionista (Roger Viollet Collection/Getty Images)

    Com Manet, não é diferente. Filho de uma família rica, ele queria fazer carreira na Marinha francesa. Como já tinha fracassado no exame admissional, seu pai o enviou a bordo no navio-­escola Havre et Guadeloupe como preparação para um próximo exame. Em suas missivas, o adolescente é econômico nas palavras, mas releva-­se maduro para a idade e perspicaz. É demolidor ao falar da escravidão: “Neste país, todos os negros são escravos; todos esses desventurados têm o semblante embrutecido; o poder que os brancos exercem sobre eles não é normal; vi um mercado de escravos, um espetáculo bastante revoltante para nós”. Ainda que às vezes deixe escapar o próprio preconceito de europeu na era colonial: descreve os negros escravizados como “feios”.

    Publicidade

    Manet

    Continua após a publicidade

    Habituado aos luxos dos palácios franceses, Manet assim define a sede imperial brasileira: “Uma verdadeira biboca, uma coisa mesquinha”. Tampouco é generoso ao falar das Forças Armadas locais: “O exército brasileiro não passa de algo cômico”. Calma, nem tudo são críticas. Como quase todo gringo, ele adorou o Carnaval carioca e deliciou-se com a paisagem natural. “Os passeios são encantadores, assistimos ao espetáculo da natureza mais bela do mundo.”

    Publicidade
    O MESTRE E O MAR - Desenho do artista: viagens do Brasil à Itália e Holanda
    O MESTRE E O MAR - Desenho do artista: viagens do Brasil à Itália e Holanda (BnF - Bibliotheque nationale de France/.)

    Manet: His Life and Work in 500 Images

    Frequentemente classificado como precursor do impressionismo, Manet escapa de convenções simplistas. Uma das melhores definições sobre sua obra é do amigo Charles Baudelaire. O poeta maldito classificou-o como “o pintor da vida moderna”. Acertou na mosca. Manet foi figura central na transição das pinturas de salão e museu, em telas imensas, para a pintura de pequenas dimensões, mais fáceis de comercializar e possíveis de serem penduradas em qualquer parede. A mudança temática acompanhou o novo formato: saíram as cenas bíblicas e históricas e entraram as figuras urbanas. Manet pintou estações de trens, bares, prostitutas, bebedores de absinto e piqueniques.

    Publicidade
    MANET NO RIO, de Édouard Manet (tradução de Régis Mikail; Ercolano; 96 páginas; 98 reais)
    MANET NO RIO, de Édouard Manet (tradução de Régis Mikail; Ercolano; 96 páginas; 98 reais) (./.)

    Quando a tela Olympia veio à luz, em 1863, a mulher negra que surge ao lado da personagem do título foi ignorada e o quadro chocou não pela nudez da modelo, mas por detalhes que permitem identificá-la como prostituta: a orquídea nos cabelos, a pulseira, os brincos e o xale oriental em que repousa. Mais tarde, pesquisadores viram no quadro um elemento nacional: só uma prostituta brasileira se daria ao luxo de ter uma escrava, em possível referência de Manet a seus tempos no Rio. A hipótese é viável — mas só suposição.

    Empenhado em ser marinheiro, o adolescente Manet tinha o desenho, então, apenas como hobby. Em suas cartas, revela ter feito caricaturas de seus colegas de viagem. Anos depois, já dedicado à pintura, outras viagens seriam mais determinantes em sua obra, sobretudo as passagens pela Espanha, Holanda e Itália, quando estudou os pintores, cores e luzes desses países, frisa no posfácio do livro o especialista Felipe Martinez, da Unicamp. Ao regressar do Rio a Paris, Manet novamente falhou em sua tentativa de entrar na Marinha e optou por uma escola de desenho. A França perdeu um marinheiro medíocre — e o mundo ganhou um pintor genial.

    Publicidade

    Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859

    CLIQUE NAS IMAGENS ABAIXO PARA COMPRAR

    Manet no Rio
    Manet no Rio
    Manet
    Manet
    Manet: His Life and Work in 500 Images
    Manet: His Life and Work in 500 Images

    *A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Domine o fato. Confie na fonte.

    10 grandes marcas em uma única assinatura digital

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo
    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de R$ 2,00/semana*

    ou
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de R$ 39,90/mês

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.