Antes de se tornar um pintor mundialmente aclamado, Édouard Manet (1832-1883) passou uma rápida temporada no Brasil. Em fevereiro e março de 1849, aos 17 anos, ele esteve no Rio de Janeiro por tempo suficiente para se encantar com a beleza natural da cidade e brincar no Carnaval. Mas se assustou também com a brutalidade da escravidão. Na época, a então capital do Brasil era a cidade com maior número de escravizados do mundo. O Censo de 1849 aponta que, dos 266 500 habitantes, 110 600 eram cativos, o equivalente a 41,5% da população. Com nova tradução, as cartas que o francês enviou a seus familiares são um testemunho precioso dessa época — e agora encontram-se reunidas no livro Manet no Rio, uma edição fartamente ilustrada com pinturas e desenhos.
É sempre interessante (mas nem sempre agradável) ver o próprio país com olhos estrangeiros, e as observações ficam ainda mais intrigantes quando os gringos são pessoas notáveis. O antropólogo Claude Lévi-Strauss escreveu em Tristes Trópicos que a Baía de Guanabara parecia uma “boca desdentada”. Albert Camus, deprimido e com enxaquecas quando esteve no Brasil, em 1949, anotou: “Nunca o luxo e a miséria me pareceram tão insolentemente mesclados”. Já a poeta americana Elizabeth Bishop mandou essa: “Se você nunca vê um Picasso autêntico, finge que Portinari é bom — ou se você nunca na vida ouviu boa música, finge que bossa nova é bom e que Villa-Lobos é o maior etc.”. Sim, os olhares de fora podem ser precisos, nada condescendentes e até mesmo cruéis.
Com Manet, não é diferente. Filho de uma família rica, ele queria fazer carreira na Marinha francesa. Como já tinha fracassado no exame admissional, seu pai o enviou a bordo no navio-escola Havre et Guadeloupe como preparação para um próximo exame. Em suas missivas, o adolescente é econômico nas palavras, mas releva-se maduro para a idade e perspicaz. É demolidor ao falar da escravidão: “Neste país, todos os negros são escravos; todos esses desventurados têm o semblante embrutecido; o poder que os brancos exercem sobre eles não é normal; vi um mercado de escravos, um espetáculo bastante revoltante para nós”. Ainda que às vezes deixe escapar o próprio preconceito de europeu na era colonial: descreve os negros escravizados como “feios”.
Habituado aos luxos dos palácios franceses, Manet assim define a sede imperial brasileira: “Uma verdadeira biboca, uma coisa mesquinha”. Tampouco é generoso ao falar das Forças Armadas locais: “O exército brasileiro não passa de algo cômico”. Calma, nem tudo são críticas. Como quase todo gringo, ele adorou o Carnaval carioca e deliciou-se com a paisagem natural. “Os passeios são encantadores, assistimos ao espetáculo da natureza mais bela do mundo.”
Manet: His Life and Work in 500 Images
Frequentemente classificado como precursor do impressionismo, Manet escapa de convenções simplistas. Uma das melhores definições sobre sua obra é do amigo Charles Baudelaire. O poeta maldito classificou-o como “o pintor da vida moderna”. Acertou na mosca. Manet foi figura central na transição das pinturas de salão e museu, em telas imensas, para a pintura de pequenas dimensões, mais fáceis de comercializar e possíveis de serem penduradas em qualquer parede. A mudança temática acompanhou o novo formato: saíram as cenas bíblicas e históricas e entraram as figuras urbanas. Manet pintou estações de trens, bares, prostitutas, bebedores de absinto e piqueniques.
Quando a tela Olympia veio à luz, em 1863, a mulher negra que surge ao lado da personagem do título foi ignorada e o quadro chocou não pela nudez da modelo, mas por detalhes que permitem identificá-la como prostituta: a orquídea nos cabelos, a pulseira, os brincos e o xale oriental em que repousa. Mais tarde, pesquisadores viram no quadro um elemento nacional: só uma prostituta brasileira se daria ao luxo de ter uma escrava, em possível referência de Manet a seus tempos no Rio. A hipótese é viável — mas só suposição.
Empenhado em ser marinheiro, o adolescente Manet tinha o desenho, então, apenas como hobby. Em suas cartas, revela ter feito caricaturas de seus colegas de viagem. Anos depois, já dedicado à pintura, outras viagens seriam mais determinantes em sua obra, sobretudo as passagens pela Espanha, Holanda e Itália, quando estudou os pintores, cores e luzes desses países, frisa no posfácio do livro o especialista Felipe Martinez, da Unicamp. Ao regressar do Rio a Paris, Manet novamente falhou em sua tentativa de entrar na Marinha e optou por uma escola de desenho. A França perdeu um marinheiro medíocre — e o mundo ganhou um pintor genial.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859
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