O cantor e compositor Bruce Springsteen ocupa uma posição singular no universo musical americano. Embora seus discos tenham alcançado vendagens expressivas e suas turnês ostentem números de faturamento na casa dos milhões de dólares, ele optou por uma vida simples. Tem uma casa a poucos quilômetros do local onde cresceu, no Estado americano de Nova Jersey, e só se veste de camiseta e jeans básicos. Suas criações não fazem frente às de um Bob Dylan — trovador que, como ele, se notabilizou por garimpar as raízes da música de seu país. Mas ele é um letrista soberbo. No lugar das metáforas e das citações literárias de um Dylan, Springsteen põe no centro de suas canções a saga do homem comum, muitas vezes abalado por tragédias pessoais ou pelos golpes na autoestima de seu país, da Guerra do Vietnã ao 11 de Setembro. Com essa atitude, o cantor criou uma relação única de cumplicidade com seu público. Bruce Springsteen é aquele americano branco que veio de baixo e “chegou lá”, o herói da classe operária que frequenta a alta-roda por seus méritos, sem sonegar as raízes.
Springsteen é democrata militante e crítico feroz do republicano Donald Trump (a quem chamou de “vigarista”). Apesar de ter lado na polarizada política americana, ninguém questiona seu lugar: é um patrimônio unânime da nação. Aos 69 anos, ele retribui a admiração lançando álbuns e shows que reafirmam suas conexões com a, digamos, “América profunda”. É essa a toada de Western Stars, seu primeiro álbum de inéditas em sete anos, lançado no mês passado e disponível no Brasil só em versão digital. Western Stars é diferente até para quem está acostumado às fases mais intimistas do intérprete de Born in the USA. Sua referência é a música americana do fim dos anos 60 e início dos 70, com arranjos orquestrais que lembram o pop sofisticado do maestro Burt Bacharach. O cantor brilha, ainda, em Springsteen on Broadway, espetáculo que levou para os palcos americanos em 2017, com ingressos caríssimos disputados a tapa. Nele, o cantor passa a limpo acontecimentos da vida e interpreta canções munido de violão ou piano. Transformado em especial da Netflix, o show agora está ao alcance das plateias globais.
Bruce Frederick Joseph Springsteen é o filho do meio de uma família de três irmãos. O pai, que sofria de problemas mentais, morreu em 1998 sem nunca ter cumprido o papel de zelar pelos filhos. Coube à mãe assumir as vezes de provedora do lar. As dificuldades da juventude se refletem nas letras de Springsteen. Western Stars, o novo disco, não foge à tradição. Se as canções que abrem o disco professam certo tom de esperança, a narrativa vai ganhando um ar doloroso e nostálgico ao longo do disco. Assim como os arranjos, que remetem às melodias de um tempo há muito esquecido no universo pop, as treze faixas do álbum falam de tipos humanos deslocados na atualidade. “Uma vez levei um tiro de John Wayne / E isso me rendeu um monte de bebida”, diz o personagem da faixa-título, que ganha a vida como ator de faroeste. O narrador de Drive Fast (The Stuntman) é um dublê que encontrou — e perdeu — o amor nos braços de uma atriz de filmes de baixo orçamento. Com sua voz rouca, Springsteen segue contando as histórias de caroneiros, vagabundos e cidadãos que vão para o meio do nada a fim de expiar erros do passado.
Em Springsteen on Broadway, o despojamento realça as emoções viscerais de que fala o cantor. Dirigido por Thom Zimny, seu habitual colaborador, o espetáculo traz Springsteen em uma conversa franca com a plateia (que é sempre mal focalizada). Não há uma banda no palco (no máximo, Patti Scialffa, a mulher do cantor, faz coro em duas canções). Muito menos um desfile de grandes hits. Springsteen optou por composições com as quais se identifica, em vez de promover um confortável karaokê com a plateia do teatro. Mesmo Dancing in the Dark, Thunder Road e Born in the USA, músicas que o converteram em um titã do pop, surgem em versões irreconhecíveis. Ironicamente, o monólogo inicial do show é uma tentativa de desmistificar o status de bardo da classe operária. “Eu sou uma fraude. Nunca tive um emprego decente em toda a minha vida, nunca trabalhei das 9 às 17 horas. Nunca estive dentro de uma fábrica, e, no entanto, é sobre ela que costumo escrever. Diante de vocês está um homem que fez sucesso escrevendo sobre algo com o qual não tem nenhuma ligação concreta. Eu inventei tudo”, diz. O rasgo de humildade é tocante — mas não livrará Springsteen do posto de herói americano.
Publicado em VEJA de 10 de julho de 2019, edição nº 2642
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