Brincar com tijolos da Lego une pais e filhos na pandemia
Com mais tempo em casa, famílias voltaram a se divertir juntas — e as vendas das peças de encaixar dispararam
A pacata cidade dinamarquesa de Billund, atualmente com pouco mais de 6 000 habitantes, assistiu em 1932 ao nascimento de um mundo mágico. Naquele ano, o carpinteiro Ole Kirk Christiansen, insatisfeito com as vendas de sua loja de móveis e ansioso para proporcionar alguma diversão ao filho, decidiu se aventurar no ramo dos brinquedos. Christiansen começou de forma artesanal, com animais de madeira. Dois anos depois, a empresa ganhou um nome — a junção das palavras leg e godt, cujo significado é “brincar bem” no idioma local — e, no fim da década de 40, veio a revolução: a Lego começou a produzir tijolos de plástico, duradouros e encaixáveis uns nos outros, abrindo infinitas possibilidades para a imaginação de crianças e adultos.
A brincadeira ficou séria e levou a empresa familiar à consagração internacional. Eleitos o brinquedo do século XX pela revista americana Fortune, os tijolinhos ainda hoje constroem sonhos e foram capazes até mesmo de driblar a crise do novo coronavírus. A marca, na verdade, viu no cenário uma oportunidade. Com pais e filhos obrigados a permanecer em casa, velhas diversões — mais lúdicas e socializáveis do que tablets ou videogames — se tornaram uma alternativa. Fenômeno semelhante ocorreu com os quebra-cabeças, cujas vendas em 2020 triplicaram, de acordo com a Ri Happy, a maior loja de brinquedos do país.
Os alicerces sólidos fizeram com que o Grupo Lego obtivesse no primeiro semestre de 2020 um dos melhores resultados de sua história. As vendas aumentaram 14% em relação ao mesmo período de 2019, enquanto o lucro avançou 11%. Distribuidor oficial da Lego no Brasil, o Grupo MCassab informou a VEJA que o país acompanhou um “crescimento de dois dígitos”, acima do esperado para o ano. Seu mais recente lançamento, a linha Super Mario, está se esgotando. “Notamos os benefícios de nossos investimentos em iniciativas de longo prazo, como e-commerce e a inovação de produtos”, disse o CEO da Lego, Niels Christiansen.
O caminho, porém, foi tortuoso. A pandemia levou ao fechamento por alguns meses de duas das cinco grandes fábricas da marca no mundo, no México e na China, o que obrigou os varejistas a recorrer ao estoque existente para atender à demanda. O mercado asiático foi fundamental: o lançamento do conjunto Monkey Kid, inspirado em uma lenda chinesa, obteve grande sucesso no país da Muralha, que deverá ganhar oitenta lojas oficiais da Lego ainda em 2020.
O novo coronavírus forçou a marca a acelerar planos que demorariam de dois a três anos para ser implementados. O número de visitantes do site dobrou para 100 milhões no primeiro semestre. Ao contrário das concorrentes Mattel e Hasbro, que relataram perdas operacionais e puseram a culpa no fechamento de lojas e problemas com distribuição e estoque, a Lego conseguiu garantir as entregas on-line ao reforçar parcerias no varejo. De acordo com um estudo da consultoria britânica Brand Finance, a pandemia deve reduzir o valor de mercado das empresas do setor de brinquedos em até 20%, um prejuízo calculado em 3 bilhões de dólares. A Lego, no entanto, deve seguir como líder mundial, com queda de apenas 3%.
O gigante dinamarquês repetiu em 2020 a notável capacidade de se reerguer — e fez isso tijolo por tijolo. No início do século, a empresa, que ainda pertence à família fundadora, quase foi à falência. Sem saber como concorrer com a onipresença de computadores e videogames, acumulou prejuízos de 200 milhões de dólares em 2003. No ano seguinte, com a troca do CEO, iniciou um plano de recuperação extremamente bem-sucedido, baseado na volta às origens: foco nos tijolos. Cortou 30% da mão de obra, reduziu os tipos de peças, eliminando versões semelhantes, e investiu em produtos licenciados como os da linha Star Wars, seu best-seller, além de outros ícones do mundo pop, como Harry Potter e Bob Esponja. Heróis como Batman e Homem-Aranha e modelos de carros como Bugatti e Ferrari também foram contemplados com versões criativas da Lego.
A estreia do longa-metragem Uma Aventura Lego (2014), que obteve grande sucesso de bilheteria, foi um marco para o renascimento da marca. Hoje em dia, os brinquedos estão presentes em 140 países (desde 1986 no Brasil), e saem das fábricas da Lego 100 bilhões de peças todos os anos. Uma de suas virtudes, a longevidade dos tijolos, se tornou um problema ambiental — eles podem demorar até 1 300 anos para se decompor no mar. A Lego, então, se comprometeu a buscar materiais sustentáveis e já estreou uma linha à base de cana-de-açúcar.
Assim como a Apple, a Lego não atrai apenas clientes, mas fervorosos fãs, especialmente educadores. “A Lego tem a capacidade de unir a família e, sobretudo, estimular a criatividade das crianças”, diz a psicoterapeuta Fernanda Grimber. “Na pandemia, desenvolver a imaginação se tornou essencial para pais e filhos. Eu diria até que a Lego tem uma função terapêutica e ajuda a baixar a ansiedade.” Perto de completar noventa anos, a empresa nascida do sonho de um carpinteiro está cada vez mais ativa.
Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708