Como todos os brasileiros, fui surpreendido pela pandemia no início do ano, que provocou o isolamento social e o fechamento de quase todas as atividades econômicas no país. O Petra Belas Artes, um dos cinemas de rua mais tradicionais da cidade de São Paulo, fechou suas portas em 17 de março, atendendo a uma solicitação pública do governador. Inicialmente, o setor acreditava que essa ação duraria trinta dias. Todos os funcionários saíram de férias. Em meados de abril, ficou claro que esse período de portas fechadas seria muito mais longo.
A esperança era que, assim que a flexibilização começasse, os cinemas também voltariam. Na Espanha, França e Itália, eles reabriram quatro ou cinco semanas após a flexibilização e muito antes de outros setores. Em São Paulo, já se vão três meses da flexibilização. Minha pergunta é: por que tudo abriu e só os cinemas não? Vale aqui ressaltar a capacidade do setor de gerar empregos, pois ele depende de mão de obra e é fundamental em shoppings para a atração de público. Além disso, trata-se de diversão mais popular e de preço mais acessível. Neste período, vários exibidores, assim como o Petra Belas Artes, tiveram, infelizmente, de demitir funcionários. Alguns espaços não mais reabrirão, pois não resistiram. Péssima notícia para um país de tão poucas opções culturais.
A manutenção do nosso cinema tem duas características básicas: equipe grande e ocupação de um dos metros quadrados mais caros de São Paulo. Portanto, folha de pagamento elevada e aluguel idem. O proprietário do imóvel entendeu a situação e diminuiu o valor pelo período em que ficássemos fechados. Mas e a equipe? Iniciamos uma campanha de crowdfunding solicitando apoio do público e foi emocionante ver a reação: mais de 400 pessoas colaboraram e batemos a meta. O plano era não demitir ninguém da equipe de 56 colaboradores para “cortar custos”, e o valor ajudou a pagar os salários naquele mês.
Pensamos em mais alternativas para resistir. No dia 1º de abril, investimos na reestruturação da plataforma de streaming Petra Belas Artes à La Carte, que já existia desde agosto de 2019 mas precisava de ajustes técnicos. Como estávamos em meio à pandemia, oferecer gratuitamente o site como opção de entretenimento para as pessoas parecia o certo a ser feito, e assim foi. Tivemos mais de 1 milhão de acessos naquele mês, com gente de todo o Brasil, e a partir de maio passamos a cobrar pela assinatura. Com isso, a plataforma vem crescendo e, mesmo que de forma modesta, ajudando como uma alternativa financeira — além de permitir que as pessoas tenham a opção de assistir em casa a filmes cult e clássicos, que não existem nas grandes plataformas.
“Alguns cinemas não reabrirão, uma péssima notícia para um país de tão poucas opções culturais”
Durante esse processo, foi fundamental a linha de financiamento de folha de pagamento que o governo federal ofereceu: garantimos mais dois meses de salário à equipe. E a Desenvolve SP, agência de fomento do estado, abriu uma outra linha de financiamento para empresas pequenas e médias. Dessa forma, conseguimos um crédito extra que nos deu novo fôlego. Foi incessante a busca para manter a estrutura. Mas ainda não era suficiente.
Em maio, a pandemia continuava sem previsão de dar uma trégua. Ficar de braços cruzados nunca foi uma característica do Belas, pelo contrário. Passamos a buscar uma alternativa para o cinema fechado, e foi quando vi a foto de um drive-in nos Estados Unidos. Caiu a ficha. “Temos um cinema, equipamento e equipe especialista. Vamos abrir um drive-in.” Na procura por um local, o Memorial da América Latina, na Zona Oeste paulistana, se revelou opção excelente. A Secretaria de Cultura e Economia Criativa do governo do estado de São Paulo apoiou a iniciativa. Era a forma de oferecer entretenimento com segurança sanitária e isolamento e, em 16 de junho, inauguramos o drive-in. Sucesso imediato. Tivemos 100% de ocupação nas oito primeiras semanas. Uma prova do apelo que o cinema tem, apesar dos pesares.
A receita do drive-in permitiu o pagamento dos salários da equipe e sua ocupação. Quando saiu a primeira tabela da flexibilização, uma ducha de água fria: os cinemas estavam “fora”. Somente poderiam reabrir após a superação da pandemia. Ou seja, sem previsão. Junto com outros exibidores iniciamos um diálogo com as autoridades e, no fim de junho, o governo estadual colocou os cinemas entre as atividades que poderiam reabrir quatro semanas após a entrada da cidade na fase amarela. A previsão de reabertura passou a ser 27 de julho. Alegria com a perspectiva. Iniciamos os planos. Programação, adequação ao protocolo definido, limpeza, enfim, todo o necessário. Marcamos e divulgamos que abriríamos em 6 de agosto. A repercussão foi a melhor possível. Muita gente ansiosa pela volta do cinema. Mas, para a decepção do setor, poucos dias depois a prefeitura informou que somente permitiria a reabertura quando a metrópole entrasse na fase verde.
Aqui destaco que todas as atividades econômicas da cidade voltaram a funcionar, inclusive igrejas onde antes eram salas de cinema no centro da cidade. Somente os cinemas e as atividades culturais não. Nas demais atividades existe a questão dos artistas num palco. Não é possível garantir o isolamento, nem exigir uso de máscara para atores, dançarinos e músicos enquanto atuam. E, em muitos casos, existe interação da plateia. Mas em uma sala de cinema não há artistas no palco. A pessoa senta em sua poltrona marcada e lá permanece durante a sessão, não leva nada do local para casa e o protocolo do estado exige que apenas 40% dos lugares sejam vendidos, com assentos vagos ao lado dos ocupados, além do uso de máscara em toda a sessão. Também é importante ressaltar que o ar-condicionado dos cinemas, desde antes da pandemia, funciona como o dos hospitais: por exigência da Anvisa, o ar de dentro da sala é trocado a todo momento por dutos que saem do exterior do cinema, por isso aquelas “grelhas” no teto das salas de exibição do Brasil. Agora, aguardamos, de fato, a reabertura em São Paulo, estado com o maior número de salas do país. A expectativa é que isso aconteça em outubro, enquanto observamos a experiência de outras cidades brasileiras e do mundo: a China reabriu as salas em julho; nos Estados Unidos, a reabertura do setor bateu os 70%.
As pessoas precisam de diversão, com segurança, e os cinemas podem oferecer isso. Esperamos que as portas se abram quanto antes.
* André Sturm, ex-secretário de Cultura da cidade de São Paulo, é presidente do Belas Artes Grupo
Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705