A pintora Artemisia Gentileschi (1593-1653) foi uma das primeiras mulheres historicamente reconhecidas por desbravar com seus pincéis o mundo até pouco tempo essencialmente masculino da arte. Ao contrário do que indica o final da história, sua trajetória não foi de glória, porém. Única representante feminina do barroco do século XVII, a filha do artista Orazio Gentileschi esperou mais de três séculos por seu reconhecimento. Acuada pela cultura patriarcal de sua época, ela teve muitas de suas obras creditadas a artistas do período – todos do sexo masculino. Só recentemente essas obras extraviadas foram identificadas como de Artemisia Gentileschi, e reunidas às demais criações da artista na primeira mostra a exibir toda a sua prpdução. A exposição História de uma Paixão, em cartaz desde setembro no Palazzo Reale de Milão, oferece até 22 de janeiro um vislumbre das telas e desenhos, além de documentos históricos inéditos da pintora.
Sua obra prima por retratar figuras religiosas e históricas, temas considerados inadequados para uma mulher. Adepta da técnica chiaroscuro – o contraste entre luz e sombra -, Artemisia é considerada uma das principais responsáveis pela difusão do estilo de pintura renascentista.
O simples fato de ser mulher definiu sua trajetória de uma maneira impensável nos dias de hoje. Pertencer ao gênero feminino foi capaz de afastá-la dos estudos. Artemisia não aprendeu a ler nem escrever e saó aprendeu a pintar porque o pai lhe ensinou. Quando completou 18 anos, Orazio Gentileschi designou ao parceiro Agostino Tassi a tarefa de ensiná-la a técnica da perspectiva. O mentor aproveitou um momento a só com a jovem e a violentou sexualmente. Artemisia guardou segredo sobre o ataque porque Tassi lhe prometeu casamento. Mas os abusos sexuais se tornaram frequentes e a jovem acabou por denunciá-lo à Justiça.
O julgamento, que foi realizado em 1612 e durou sete meses, teve grande repercussão. Para defender-se das acusações de abuso sexual, Tassi alegou que Artemisia era uma artista sem talento e, por isso, queria vingar-se dele. O fato, porém, de já ter sido acusado de violentar sua cunhada e de ter participado da morte de sua mulher pesou para a condenação de Tassi, que cumpriu apenas quatro meses dos cinco previstos no exílio de Roma, graças à influência política que tinha. Artemisia, por sua vez, foi acusada de não ser virgem no momento do estupro e teve que passar por um exame para concluir a quanto tempo ela havia sido deflorada.
O episódio marcou profundamente a artista. Prova disso é a tela Giuditta che Decapita Oloferne, pintada logo após o julgamento. A cena sombria retrata a passagem bíblica em que a viúva Judite, com a ajuda de uma criada, decapita o capitão Holofernes para salvar o povo de Betúlia da invasão assíria. Em outra tela, Giuditta con la sua Ancella, Judite aparece com uma espada em punho e a cabeça de Oloferne num cesto. Representações pictóricas de mulheres em luta contra a dominação masculina passaram a ser uma constante em sua obra.
Na idade adulta, Artemisia casou-se e foi morar em Florença, onde teve seu primeiro filho. Em 1616, ela foi uma das primeiras mulheres a integrar o time de artistas da Academia de Design de Florença, em 1616. A vida de mulher casada não agradou a Artemisia, que deixou o marido após alguns anos. Seu talento artístico garantiu o suporte do mecenas Grand Duque Cosimo II, integrante da influente família Medici.
As circunstâncias sobre sua morte são desconhecidas. Esse é o motivo pelo qual os historiadores acreditam que Artemisia pode ter cometido suicídio. Um final não menos misterioso que a sua trajetória, impensável para uma mulher do século XVII.