Eles se conheceram em 1943, durante a ocupação nazista da França. Pablo Picasso tinha 61 anos e já era o grande nome da pintura ocidental, incensado e temido — homem dado a colecionar amantes e depois rejeitá-las como quem atirava ao lixo uma paleta de tintas carcomida pelo tempo. Françoise Gilot, de 21 anos, olhos verdes cintilantes, filha de uma família muito rica, alimentava o sonho da carreira artística, entre telas e cerâmicas. No início, foi o melhor dos mundos — o gênio espanhol chegou a desenhá-la como uma flor. Tiveram dois filhos (Claude e Paloma), viveram juntos dez anos, mas havia algo de muito errado no relacionamento conduzido pela arrogância, grosseria e violência do marido, cuja arte parecia andar na contramão de sua intimidade. No auge de uma discussão — e invariavelmente elas começavam com a descoberta de traição — Picasso ameaçou queimá-la com a ponta acesa de um cigarro.
Gilot desistiu. Fez as malas, levou as crianças e abandonou a casa em Vallauris, na Riviera Francesa. “Nenhuma mulher deixa um homem como eu”, disse ele, segundo relato da ex-mulher, publicado no livro A Minha Vida com Picasso, best-seller internacional lançado em 1964 (mais de 1 milhão de exemplares vendidos) e que os advogados dele tentaram por pelo menos três vezes barrar nos tribunais. “Você acha que alguém vai se interessar por você? Mesmo as pessoas que te apreciam terão apenas uma espécie de curiosidade por uma pessoa cuja vida tocou a minha tão intimamente”, esbravejou o machão, como se pudesse reinventar o passado e esculpir o futuro.
A vingança é prato que se come frio. Os curadores do Museu Picasso, em Paris, acabam de anunciar a abertura de uma sala dedicada à obra de Françoise Gilot, que morreu em junho de 2023, aos 101 anos. Em pouco mais de uma dezena de telas, há alternância entre o abstracionismo e o figurativismo, as cores vivas e o cinza, em obras de excelência (em junho de 2021, um de seus quadros, Paloma à la Guitare, de 1965, foi leiloado na Sotheby’s americana por 1,3 milhão de dólares). Não se trata, no salão parisiense dentro de uma bela mansão do bairro do Marais, é bom lembrar, de recuperação e compilação dos óleos de Picasso inspirados por Gilot. O jogo mudou; trata-se agora de retocar a história, em correção de um destino construído com sordidez. “A maneira de Gilot ver o mundo, em trabalhos de qualidade, era muito diferente da de Picasso”, disse a VEJA Malte Herwig, autor de The Woman Who Says No, ainda sem tradução para o português.
Ter Gilot como criadora e não como satélite subjugado a Picasso é movimento extraordinário — conversa com os humores de nosso tempo, ao apartar a abjeta misoginia e barrar a ideia de que os homens têm o direito de olhar para as mulheres a partir da torre de marfim. Não pode ser assim, e soa tola a convicção tão espraiada de que o jeito de Picasso era retrato daquele tempo. O machismo não pode ser de tempo algum. Não é o caso, também, de diminuir o tamanho de um dos grandes personagens do século XX, o autor de Les Demoiselles d’Avignon e de Guernica. O mundo seria pior, feio e insosso, sem o edifício de beleza erguido pela arte de Picasso — e muito melhor se ele tivesse a hombridade de respeitar as companheiras.
Picasso fez de tudo para destruir a carreira de Gilot. Pressionou os donos de galerias e colecionadores a evitar os trabalhos da mãe de seus filhos. Decidiu nunca mais vê-los — postura depois confirmada com o lançamento do detalhado livro de memórias. Françoise Gilot deveria ser posta no limbo, a mando do pintor. A influência de seu nome fez com que mais de oitenta intelectuais franceses — todos homens — rubricassem um abaixo-assinado contra a mulher que teve coragem de dizer não e o mandou passear. Viver na França, portanto, era uma impossibilidade. Gilot mudou-se para os Estados Unidos, onde viria a se casar com o virologista americano Jonas Salk, o inventor da primeira vacina antipólio. Reconstruir a vida era o único modo de imunizar-se.
Entrar na sala dedicada a Gilot e depois seguir pelo Museu Picasso é fazer justiça. É caminho que pode ser traduzido por uma frase de Paloma, a filha que ficou ao lado da mãe e nunca deixou de criticar o comportamento do pai. Disse Paloma, logo depois do ruidoso volume autobiográfico de Gilot: “Ela não fez um livro contra Picasso, ela fez um livro que humanizou Picasso. Por que ele deveria ser um homem perfeito? Torná-lo uma espécie de Deus incontornável era um modo de lhe tirar a humanidade”. Pôr as telas de Gilot ao lado das dele é maneira de tirar o verniz do passado e iluminar o inaceitável.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885