No começo dos anos 1950, a americana Ruth Handler observou sua filha de 10 anos, Barbara, brincar com bonecas de papel com as amigas. Ela percebeu que a diversão ia além da mera troca de roupinhas: as garotas construíam um universo de faz de conta ao se imaginar interagindo com versões mais velhas de si mesmas. Aquilo tocou Ruth como uma epifania: e se ela criasse uma personagem em forma de brinquedo com aparência de adulta — e capaz de funcionar como um espelho sem limites para as viagens infantis? Então proprietária de uma promissora, mas ainda não dominante fábrica do ramo, Ruth dedicou três anos à criação de uma boneca de 29 centímetros de altura, e a apresentou em 1959 com um nome inspirado na própria filha: nascia assim a inescapável Barbie.
A trajetória da mãe da boneca mais famosa do mundo é investigada pela historiadora Robin Gerber em Barbie e o Império da Mattel. A nova edição no país da afiada biografia de 2009 vem no momento em que a personagem volta ao centro da cena, embalada pela expectativa com o filme sobre seu universo que chega aos cinemas em julho, com Margot Robbie no papel central. Com primor narrativo e curiosidades reveladoras, a autora esmiúça o modelo de negócios inovador criado por Ruth em sua companhia, a Mattel, bem como as dores que a inventora e empresária enfrentou ao longo da vida — da descoberta de um câncer que exigiu mastectomia nos anos 1970 à morte de um filho por complicações do HIV, nos anos 1990.
Barbie Fashionista Loira com Cadeira de Rodas
Quando a Barbie apareceu, Ruth era cocriadora e vice-presidente executiva da Mattel, fundada em 1944 e que se tornaria a maior fabricante de brinquedos do mundo — graças, em boa medida, ao sucesso da Barbie. Comandar a empresa conferia a Ruth, descrita como uma figura de “espírito rebelde”, competitiva e ambiciosa, destaque em uma época em que havia poucas mulheres na liderança. Ainda assim, houve resistência à sua invenção. Na época do lançamento, diziam que a Barbie era um capricho impossível: o produto não seria rentável e as mães americanas não comprariam uma “boneca sexualizada” para as filhas. Mas Ruth insistia. Em uma viagem à Europa, deparou com a boneca de plástico Lilli, que surgira em uma história em quadrinhos vulgar e fora concebida como brinquedo erótico, só mais tarde caindo nas mãos da criançada. Ruth comprovou que a ideia de criar sua personagem loiríssima e adulta era, sim, viável. Um engenheiro foi enviado ao Japão em busca de um modo de produzi-la a custos menores, e uma estilista foi contratada para desenvolver as roupinhas com detalhes minuciosos. Graças a comerciais veiculados no programa Mickey Mouse Club, da Disney, a boneca explodiu. Nos anos 1990, três Barbies eram vendidas em algum lugar do mundo a cada segundo.
Barbie Dreamtopia Sereia Luzes e Brilhos, Mattel
Para Ruth, a Barbie representava o tipo de mulher que queria ser quando criança, atraente e independente. Nascida Ruth Mosko, era a décima filha de um casal judeu emigrado da Polônia. Ruth foi criada pela irmã mais velha e cresceu ansiosa por provar seu valor. Conheceu seu parceiro de vida e dos negócios, Elliot, no fim da adolescência e, depois de casados, se mudaram de Denver para Los Angeles em busca do sonho americano. Elliot era o típico artista introvertido, enquanto Ruth era determinada e intuitiva para os negócios. Ele criava, ela vendia. Começaram em uma garagem, investindo em plástico para fabricar bijuterias e objetos de uso cotidiano, e logo se voltaram para os brinquedos, aproveitando o mercado resultante do baby boom do pós-guerra.
De início, Ruth carregou a empresa nas costas, sem nenhuma educação formal na área dos negócios — só em 1957 buscou um curso na Universidade da Califórnia, enriquecendo com teoria o que já realizava na prática. Na década de 60, a Mattel experimentou um crescimento colossal. Mas nem tudo era cor-de-rosa no mundo de Ruth. O desgaste físico e emocional deixado pelo câncer foi acompanhado de uma crise financeira na companhia, que originou uma contabilidade baseada em vendas de mentira e receita falsa. O casal foi gradualmente retirado da empresa e, em 1978, Ruth foi indiciada por fraude. Aos 62 anos, escapou da prisão, mas foi sentenciada a cinco anos de serviço comunitário. O desejo pela redenção fez com que apostasse em um novo empreendimento de próteses de seios, a Ruthton. Era sua forma de ajudar mulheres que, assim como ela, tiveram sua autoestima dilapidada pela doença.
Ruth voltou à Mattel como porta-voz nos anos 1990, após anos de exclusão. Ela morreu aos 85 anos, em 2002 — ainda em tempo de ver sua filha de plástico sofrer mudanças radicais para adaptar-se aos novos tempos. Hoje, após muitas críticas de especialistas, a Barbie vai muito além da loira longilínea original: da cor da pele aos padrões físicos, há uma boneca para cada criança chamar de sua. A mãe obstinada deixou muitos frutos.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824
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