Na loteria das probabilidades astrofísicas, a Terra tirou um bilhete raro: ganhou um satélite que, mais do que um mero corpo celeste à sua órbita, configura-se como uma representação daquilo que seduz e atormenta a humanidade. Sempre com a mesma face voltada para nós, dependurada no nosso céu próximo e às vezes tão grande e brilhante que seus mares, crateras e cordilheiras podem ser adivinhados a olho nu, a Lua é, na imaginação humana, um portal — perto o bastante para que se sonhe alcançá-la, ela no entanto guarda atrás de si a promessa de um desconhecido infinito. Chega a ser óbvio que o francês Georges Méliès logo se tenha dado conta de que suas trucagens pioneiras faziam do cinema o meio ideal para levar a plateia a lugares que não existem ou aos quais não se pode chegar, e que o mais desejado deles estava ali, bem à vista. Méliès, que antes de ser cineasta fora mágico, mesmerizou o público com a história de um grupo de astrônomos que constrói um foguete para alcançar a superfície lunar, na qual encontra uma civilização de selenitas hostis. Dos mais de 500 curtas-metragens fantasiosos, rebuscados — e encantadores — que ele fez durante a carreira, foi Viagem à Lua, de 1902, que se tornou sinônimo de seu nome (e são grandes as chances de que mesmo quem não viu o filme conheça a cena estampada acima, que mostra o foguete espetado no rosto mal-humorado de uma Lua de queijo).
A ilusão de que a Lua poderia abrigar quaisquer habitantes não resistiu à ciência, que informou ser ela estéril e morta. As especulações sobre formas de vida extraterrestres, assim, foram transferindo-se para Marte e além. Mas o cinema B, que não dá muita bola para o que a ciência diz ou desdiz, ainda hoje imagina todo tipo de segredo sensacional no lado escuro da Lua, desde presenças malignas (como em O Lado Sombrio da Lua, de 1990) até bases em que nazistas se preparam para reconstruir o Reich (Iron Sky, de 2012) e colônias lunares mantidas em sigilo por agências que não constam de nenhum organograma (no conspiratório Lunópolis, de 2010). Até exploradores vitorianos já foram encontrados por lá, como em Os Primeiros Homens na Lua, de 1964, baseado no romance homônimo do H.G. Wells de A Guerra dos Mundos e A Máquina do Tempo, no qual uma expedição supostamente pioneira ao satélite revela o sobrevivente de uma missão realizada no século XIX.
O apelo inesgotável da Lua, porém, é a sua posição de limiar entre este mundo e o universo. E nenhum filme capturou tão bem esse mistério quanto 2001 — Uma Odisseia no Espaço. Na história escrita pelo inglês Arthur C. Clarke, que no pós-guerra propôs o uso dos satélites geoestacionários nas telecomunicações, e dirigida pelo mais obsessivo dos perfeccionistas, o americano Stanley Kubrick, um pico de magnetismo levava os astronautas primeiro à cratera de Clavius, na qual descobrem um artefato misterioso enterrado sob a superfície lunar, e dali até os confins do universo, numa busca pela origem desse artefato que resulta, afinal, numa busca existencial — uma viagem do homem para dentro de si mesmo.
Lançado pouco mais de um ano antes de Neil Armstrong imprimir sua pegada na Lua, 2001 antecipou o espanto da humanidade com o alcance de sua conquista e marcou a ficção científica de tal forma que toda viagem ao espaço empreendida pelo cinema, desde então, carrega essa faceta — ou foge dela de maneira decidida, como na excelente ficção tecnológica que se fez tendo como matéria-prima a corrida espacial, a exemplo de Os Eleitos (1983), Apollo 13 (1995) e a minissérie Da Terra à Lua (1998). Às vésperas do cinquentenário da alunagem da Apollo 11, entretanto, um filme singular uniu essas duas correntes em um mesmo círculo. Em O Primeiro Homem, lançado no ano passado, a trajetória de Armstrong é reconstituída nos seus mais autênticos detalhes tecnológicos, mas é também retratada como uma jornada de introspecção — uma procura por sentido e por um novo limiar depois de uma perda irreparável. Na visão de O Primeiro Homem, Armstrong é um pioneiro de uma nova era das navegações, movido por um impulso em que os desejos de fuga e de descoberta são indissociáveis. Os mesmos desejos, enfim, que o homem experimenta desde a primeira vez em que tomou consciência daquela esfera brilhante que parece estar quase ao alcance de sua mão.
Publicado em VEJA de 17 de julho de 2019, edição nº 2643
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