A lista das músicas mais tocadas no Brasil nos últimos vinte anos traz algumas obviedades e uma surpresa. De acordo com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), a liderança é ocupada por Ai Se Eu Te Pego, o onipresente sucesso de Michel Teló. Get Lucky, da dupla francesa Daft Punk, que dominou as pistas e rádios em 2013, aparece na terceira posição. O inesperado está no segundo posto, entre as duas canções: o tradicionalíssimo Parabéns a Você, entoado em praticamente todos os aniversários nas diferentes regiões do país, nas mais diversas classes sociais e em qualquer idade, para crianças que completaram seu primeiro ano de vida ou para velhinhos centenários que não se cansam de repetir os mesmos versos por décadas a fio. A mágica canção faz agora, no próximo domingo, 6 de fevereiro, oitenta anos muito bem vividos — e, como mostrou o Ecad, ela continua indissociável da vida de cada um de nós.
Antes de chegar à versão brasileira, porém, é preciso voltar no tempo. Em 1875, as irmãs americanas Mildred e Patricia Smith Hill, professoras de uma escolinha primária em Louisville, no Kentucky, criaram a melodia original. Elas repetiam “Good morning to all” (“Bom dia a todos”) quatro vezes como uma forma simpática de receber os alunos. Anos mais tarde, em 1924, a melodia apareceu no livro de partituras Celebration Songs, de Robert Coleman, com nova letra: “Happy birthday to you”, repetida quatro vezes. Na terceira, you dava lugar ao nome do aniversariante. Coleman não deu o crédito às irmãs Hill, foi processado e perdeu. Mais tarde, a canção apareceu em um musical da Broadway, em 1933, e começou a se espalhar pelo mundo.
Foi assim que chegou ao Brasil. Turistas americanos de passagem pelo país comemoravam seus aniversários cantando Happy Birthday to You em locais sofisticados como o Cassino da Urca. A música ficou tão popular que todos a repetiam mesmo sem saber direito a letra. O locutor Henrique Foréis Domingues, conhecido pelo apelido de “Almirante”, decidiu reagir quando viu o estrangeirismo. Defensor da música brasileira, ele lançou, em outubro de 1941, um concurso no programa A Orquestra de Gaitas, da Rádio Nacional, para escolher uma letra em português.
A vencedora foi a discreta dona de casa Bertha Celeste Homem de Mello, então com 40 anos. Filha de fazendeiros e moradora de Pindamonhangaba, no interior de São Paulo, Bertha tinha se formado em letras e farmácia, mas nunca exerceu as profissões. Gostava de participar de concursos de rádio e escrever poemas. Contava que teve a ideia em cinco minutos e pediu para que um funcionário da casa levasse a carta com os versos ao correio.
A letra original que cativou o júri era um pouco diferente do que cantamos hoje. Ela dizia “Parabéns, parabéns / Nesta data querida / Muita felicidade / Muitos anos de vida”. Quando foi gravada, em 1944, pelo grupo Milionários do Ritmo, ela sofreu a primeira alteração: “Parabéns a você”. Outras mudanças, como “Parabéns pra você” e “Muitas felicidades”, causavam incômodo em Bertha.
A segunda parte da música não foi escrita pela poetisa. A versão mais aceita da história diz que se trata de um apanhado de bordões dos alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. “É pique, é pique”, por exemplo, veio do apelido de um deles, conhecido por andar sempre com uma tesoura no bolso para aparar o bigode. “É meia hora, é hora, é hora, é hora” fazia parte de uma brincadeira com o tempo que a cerveja demorava para resfriar nas barras de gelo do Ponto Chic, no centro de São Paulo. E “Rá-tim-bum”, na verdade, era “rá, já, tim, bum”, piada com o nome de um rajá indiano. Convidados para animar festas de aniversário, eles juntaram seus gritos à letra de Bertha.
Os pormenores da história foram reunidos pelo jornalista Marcelo Duarte, autor da série de almanaques Guia dos Curiosos. Há pouco mais de dez anos, quando a letra da canção completaria setenta anos, ele decidiu buscar as origens da música e escrever um livro sobre o tema. Conversou com Eliana Homem de Mello Prado, única neta de Bertha, e vasculhou edições antigas de jornais para encontrar as menções ao concurso e à repercussão do evento. Duarte acabou engavetando o projeto ao perceber que o livro ficaria muito pequeno.
Com a pandemia, resolveu rever o material e teve uma ideia. “Decidi escrever ficção a partir de um fato verdadeiro, como Rubem Fonseca fez em Agosto”, diz. O resultado é Parabéns a Você, trama policial destinada a jovens leitores que chega agora às livrarias. O curador de curiosidades, como se apresenta, incluiu o material da pesquisa original na forma de “bastidores da ficção”. É uma justa homenagem a uma canção que, cedo ou tarde, todos nós cantaremos. É pique!
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775