“Quando tudo isso passar, nada voltará a ser o que era. Menos o de sempre, claro!” El Roto, filósofo laureado da Espanha, publicou um cartoon com essa legenda no El País. Com alvo claro: ironizar a avalanche de boas intenções ao afirmar que, agora, com a peste, tudo vai mudar. Melhor nem perguntar: quando vai passar? Vai? E quanto dura o sempre?
Comportamentos resistem às mudanças impostas por teorias, ideologias, tecnologias e ameaças de morte — bastou ver a massa de gente nos parques e nas margens do Sena no primeiro fim de semana de confinamento. Ou, pior, agora, nas praias da Flórida e da Califórnia. Mas sim: desastres, como a peste, trazem novas práticas — não raro passageiras. Na arte também. Com feiras adiadas ou canceladas, as galerias que ditam mundialmente gostos e preços reagem abrindo viewing rooms digitais, salas virtuais na internet onde mostram seus produtos. Compradores compulsivos e especulativos aderem de imediato. Mas não fazem a norma. Nem mesmo para eles. Comprar arte é todo um comportamento: viajar para outra cidade, país, de novo encontrar o mesmo piccolo mondo e ser visto comprando lá aquilo que se viu na galeria aqui.
Mas ver arte, apenas, como fica? Museus (e restaurantes) não reabrirão tão cedo (salvo, na França, os “museus vazios”, aqueles menores, sem público: para que abri-los, então?). Ver pela internet? Há um problema: a percepção do corpo físico da obra em relação ao meu corpo físico. O contato entre obra e observador é como a relação interpessoal em tempos de peste: tudo é questão de distâncias, mínimas e máximas, porém presenciais. O contemporâneo em arte é, não raro, grande, enorme: como em Regina Silveira, Donald Judd, Richard Serra. No moderno, idem: Matisse e suas Danças, Pollock, Guernica, as Nymphéas infinitas de Monet. A arte “clássica” antecipou-se com o David de Michelangelo em Florença, a vasta As Bodas de Caná de Veronese hoje no Louvre. Nada disso “funciona” no digital, que serve, se tanto, para a arte pequena que meu corpo domina (mesmo se apenas para explodir minha cabeça por dentro): Vermeer. Em termos de artes plásticas, o digital oferece apenas aquilo que Jean Baudrillard denunciava: o simulacro.
Diante da pandemia, algumas cabeças têm um acesso de “bons sentimentos” e de “politicamente corretos” misturado a populismos ideológicos variados, e, com a ajuda do digital, põem-se a profetizar: tem exposições demais no mundo, concertos demais (rock, música erudita), demasiados filmes, livros em excesso, artistas ficam em aviões pra cima e pra baixo, mostras de arte entopem os museus com obras cujo aluguel (hoje, trata-se aluguel, sem dizê-lo, claro) e seguro custam uma fábula, é preciso olhar para a arte povera (seu introdutor nas altas esferas da arte, o curador Germano Celant, morreu há pouco — do vírus). Prega-se a defesa da “cultura de proximidade”, a cultura curta como a chamo, contra a cultura distante, a cultura de longo curso.
“Na verdade, faz décadas que o tema da cópia virtual habita os museus. Las Meninas há muito não sai do Prado”
Só que a ideia da “proximidade” funciona para açougue e médico de família; a cultura — e, em seu interior, a arte — é sempre de longo curso. No espaço e no tempo. Precisa de vias largas e amplos corredores aéreos. E, quando se atrelam esses conceitos à ideia de excelência e capacidade para interessar, o cenário fica mais turvo: um concerto de rock é tanto de música (talvez menos) quanto de corpos próximos — e muitos corpos, milhares, em contato. Destinar o dinheiro hoje dirigido ao Louvre ou Masp para os museus locais? Os espíritos apressados da política cultural desconhecem o papel que a concentração e a localização têm na cultura. Uma indústria têxtil ou farmacêutica pode ser deslocalizada para qualquer outro extremo do mundo. Mas a Escola de Paris não poderia deslocalizar-se para Vancouver. Se tivesse surgido ali, tudo bem; como surgiu em Paris… Tudo pode ser mudado — mas, ao ser mudado, muda de nome, de natureza.
Ora, estamos no meio da peste e no meio do digital. Não dá mais para levar arte daqui pra lá, ou pior, hoje é imoral ficar levando arte daqui pra lá. Na verdade, há décadas o tema da cópia virtual habita os museus. Las Meninas há muito não sai mais do Prado, o Reina Sofía não empresta Guernica, Mona Lisa não deixa o Louvre. Ver uma Mona Lisa digital em São Paulo será pior ou melhor do que olhar para a verdadeira no Louvre —ela atrás de um vidro e o visitante, de outro (o da lente do celular), a 3 metros de distância e numa fila que por ela passa sem se deter? Mas o Louvre aceitará ceder uma cópia digital dela mesmo cobrando? E o medo de perder a aura? Quanto vale uma exclusividade, qual o valor da aura? Aura não tem preço. Se tiver, não tem aura. O museu vai ter de pensar. Mesmo porque a prefeita de Paris irá lembrá-lo das noites de hotel, das refeições em restaurante (se reabrirem, ambos), das taxas a ser pagas pelos turistas que chegam para ver Mona Lisa ao vivo…
O digital não corroeu (ainda) a aura em arte, como o filme não perdeu a sua por existir, antes do digital, em centenas de cópias de celuloide. A aura foi e é imaterial, descolada da obra que a promove: penetra na obra pelo contexto, pelo conceito. E o comportamento volta à cena: ver arte significa(va) ir ver arte. A peregrinação e sua versão pagã, a viagem, sempre foram valores certos. Também na arte. Arte em cópia digital para ver-se aqui, ela isolada do contexto, é simulacro, ave Baudrillard! (Ele que nunca disse o que não é simulacro na vida.)
Como não ser mais o de antes? Não é tão difícil: como a peste, a tecnologia muda a cultura. Certas ideias desaparecem em duas gerações ou três; outras resistem bem mais — para o bem ou para o mal. Ou para a indiferença. A descobrir em seu tempo.
* Teixeira Coelho, ex-curador do Masp, coordena, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), o grupo sobre culturas computacionais. Seu livro mais recente é eCultura, a Utopia Final: Inteligência Artificial e Humanidades (2019)
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688