No início da década de 1930, Walt Disney (1901-1966) procurava um personagem para fazer companhia a Mickey Mouse. Em um dia prosaico, ele ouviu o cultuado dublador Clarence Nash (1904-1985) reproduzir vozes de animais no rádio e se encantou com o artista entoando a cantiga Mary Had a Little Lamb (Maria Teve Um Cordeirinho) com um som peculiar. Idealizado por Nash como a voz de um cabrito, o ruído quase incompreensível soou para Disney como um pato. “Ele ficou tão encantado com aquilo que disse ‘aí está meu personagem’, e já contratou Clarence Nash para fazer dois trabalhos com a voz do Donald”, explicou Edenilson Rodrigues, tradutor das HQs do Pato Donald no Brasil, no evento de 90 anos do personagem ilustre — que estreou nas telas no desenho A Galinha Esperta, da série musical Silly Symphonies, em 9 de junho de 1934.
Recém lançado ao estrelato, Donald não era protagonista da trama, mas não demorou a roubar a cena e cair nas graças do público com seu humor rabugento. “Ao mesmo tempo estava entrando em produção um curta do Mickey em benefício dos órfãos. Ali o Donald se destaca totalmente, e o resto é história”, conta Edenilson. E coloca história nisso: desde então, Donald ganhou o próprio desenho, estrelou mais de 150 curtas animados, além de dezenas de shows e especiais de televisão. Nash, inclusive, dublou a ave famosa até o seu falecimento, em 1985 — mesmo em idiomas como o português, o alemão e o espanhol — eternizando o ruído de compreensão questionável no imaginário de diversas gerações que cresceram com Donald.
Fenômeno dos quadrinhos
Nem só de telas, no entanto, vive o Pato Donald. Antes mesmo de estrear em A Galinha Esperta, a figura já havia aparecido de maneira discreta em livros da Disney, mas não como conhecemos hoje. Ele era, até então, apenas um pato genérico que personificava a ideia de Walt Disney de desenvolver aquela que se tornaria uma das marcas registradas do estúdio, com um verdadeiro império nas tirinhas de jornais e revistas em quadrinho ao longo dos anos.
Nas páginas, entre os principais ilustradores e quadrinistas de Donald estão figuras como Al Taliaferro (1905-1969) e Carl Barks (1901-2000). Foi Taliaferro, por exemplo, quem deu origem à “família pato”, com a criação dos sobrinhos de Donald. Barks, por sua vez, foi o responsável por revolucionar o personagem, e mudar a sua personalidade: antes infantilizado e nem aí com nada, ele virou um adulto rabugento, mas sempre comprometido. “No cinema, ele era um pato barulhento e brigão. Quando eu comecei a desenhá-lo, o coloquei em situações que ele tinha que agir de forma inteligente e falar bem”, declarou certa vez Barks, que inspirou figuras como Steven Spielberg — que bebeu da fonte dos quadrinhos do Pato Donald para algumas cenas de Indiana Jones.
Sucesso no Brasil
No mercado editorial brasileiro, a história do Pato chegou em 1938, com o Suplemento Juvenil de Adolfo Aizen. Pouco depois, em julho de 1943, a Editora Melhoramentos publicou o primeiro livro do personagem, que recebe os dois sobrinhos do Mickey em sua casa. Já 1950, a editora Abril lançou a revista O Pato Donald, que é o título de quadrinhos mais extenso no Brasil — esteve em circulação de forma ininterrupta por 68 anos, até julho de 2018. Mas as histórias seguem até hoje: em 2019, a Culturama passou a deter o licenciamento das histórias da Disney no Brasil, enquanto a Panini publica, desde 2020, edições de colecionadores.
O traço de Pato Donald por aqui foi definido pelo quadrinista Moacir Soares, que desenhou o personagem por décadas — foi ele, inclusive, que traçou a Margarida como conhecemos hoje no Brasil, modificando a versão americana, que apenas adaptava a figura de Donald para o feminino, sem grandes alterações. “Por causa dele, o Brasil por muitos anos foi o maior produtor de quadrinhos Disney do mundo, e hoje é considerada por historiadores a melhor fase dos quadrinhos”, atestou Paulo Maffia, editor-chefe da Editora Culturama. “Disney e Donald pra mim foi um tesouro desde o começo”, declarou Moacir, que tem dois irmãos também ilustradores. “Só tenho a agradecer” — quem agradece mesmo, são os brasileiros que cresceram com Donald.