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‘Overtourism’: quando o bem-vindo afluxo de viajantes passa do ponto

O fenômeno, que atrapalha a vida local, começa a ser combatido

Por Pedro Cardoni 24 set 2023, 08h00

O turista que atravessa a fabulosa galeria dos italianos no Museu do Louvre, em Paris, e desemboca na sala em que reina a Mona Lisa, a dona do sorriso misterioso que Leonardo da Vinci deixou à humanidade, vai ter de enfrentar fila demorada para chegar perto da tela. Se der muita sorte, poderá examinar o fundo feito à base de sfumato, a técnica inventada pelo gênio renascentista. Não tão longe dali, a Torre Eiffel, que ostenta o título de monumento pago mais visitado do planeta, bate recorde atrás de recorde de bilheteria, tornando a subida ao topo um teste à paciência. Na alta temporada, arranjar um lugar debaixo de uma barraca nas areias portuguesas do Algarve é outra dessas missões quase impossíveis. O engarrafamento de gente nas ruelas que beiram os canais de Amsterdã até já abalaram a sustentação do terreno em volta. Todos esses são sinais de um fenômeno moderno batizado de overtourism, quando o bem-vindo afluxo de viajantes passa do ponto, sobrecarregando cartões-postais e alterando a rotina dos moradores.

É este excesso que cidades que se tornaram destino de crescentes multidões começam a combater, com ações que, em sua essência, miram uma coexistência harmônica entre forasteiros e locais. Não que cidades como Paris, Roma ou Londres não queiram atrair gente de distintas nacionalidades, sobretudo aqueles que vêm com os bolsos recheados. A questão é justamente quando o número extrapola o razoável, piorando os serviços, elevando preços e castigando paisagens de raro valor. Por isso, muitos centros urbanos extraordinários, a maior parte em solo europeu, já se mexem para alcançar um equilíbrio — tarefa nada simples diante da incessante chegada de estrangeiros.

VIAJANDO E APRENDENDO - Amsterdã: multas para quem urina nas ruelas
VIAJANDO E APRENDENDO - Amsterdã: multas para quem urina nas ruelas (ANP/AFP)

Segundo um recente relatório da Organização Mundial do Turismo, o contingente de viajantes está próximo de 1 bilhão, semelhante à marca pré-­pan­de­mia, patamar que deverá dobrar até 2030. A previsão aí é que os chineses, contumazes andarilhos pelo globo, voltem a empacotar as malas com o mesmo ímpeto de antes do coronavírus. Só na Europa, espera-se que a presença deles suba 95% no curto prazo, seguindo o embalo dos japoneses, os mais afeitos ao consumo, que já se espalham em bandos por toda parte. “Com poupanças que engordaram na pandemia e mais vontade do que nunca para correr atrás do tempo perdido, as pessoas estão viajando além do esperado”, afirma Osiris Marques, estudioso do turismo da Universidade Federal Fluminense.

Uma frente de iniciativas para frear os formigueiros humanos se baseia em regras para fazer o viajante, especialmente aquele que passa um, dois dias num lugar, pensar duas vezes antes de decolar. Esses que fazem um bate-volta, na busca de extrair o máximo no menor tempo possível, frequentemente se enquadram no ramo do “turismo predatório”. A atribulada Veneza já avisou que, a partir de 2024, os que não pernoitarem por lá terão que pagar uma taxa, que pode subir conforme a lotação da centena de ilhotas ligadas por pontes sobre a poética (por vezes fétida) rede de canais. Também a turma que chega a bordo de cruzeiros está proibida de desembarcar nas cercanias da Praça de São Marcos, o “salão mais elegante da Europa”, como definiu Napoleão Bonaparte. O aluguel de residências tocado por gigantes como o Airbnb compõe outra linha de ação — governos de lugares como Florença, Amsterdã, Praga e Viena decidiram vetar estadas de curta duração, exatamente para inibir a vinda de quem gasta pouco e prefere festa e barulho a cultura e laços com a terra a desbravar.

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BASTA - Manifestação em Veneza: taxas e regras para controlar os forasteiros
BASTA - Manifestação em Veneza: taxas e regras para controlar os forasteiros (Stefano Mazzola/Getty Images)

Uma novidade é o conjunto de medidas que pretende educar o turista, punindo os que resistem aos bons modos sugeridos em cartilhas. Na Itália, quem se sentar na concorrida escadaria da Praça de Espanha, em Roma, recebe multa de 250 euros, enquanto em Portofino, na Riviera, quem monopoliza recantos bons para selfies paga 275 euros pela demora. “As selfies estavam bloqueando ruas inteiras”, explicou o prefeito Matteo Viacava. Levar alto-falantes às areias do Algarve, por sua vez, rende penas de pelo menos 200 euros. Em Amsterdã, onde placas oficiais avisam “Parem a loucura”, os visitantes são castigados ainda em flagras de embriaguez (100 euros), urina em público e poluição sonora (140 euros cada), e não podem mais consumir maconha nos cafés, o que era liberado desde 1976. “A cidade seguirá hospitaleira e tolerante, mas o alto consumo de drogas está financiando a ação do tráfico, e isso precisa ser combatido”, justificou a prefeita Femke Halsema.

Houve um tempo, não tão distante assim, em que entrar num avião era um luxo reservado aos estratos mais ricos da população mundial. Nos anos 1970, com a flexibilização nas normas que regiam a indústria aérea em certos países, a competição chacoalhou os ares. E as passagens foram ficando mais acessíveis, movimento que viria a ganhar impulso com o aparecimento das companhias de baixo custo. A isso, se somou o advento da internet, que facilitou em tudo a vida do viajante. Neste horizonte, plantou-se em escala global a semente de um prazer muito humano — o de se lançar ao desconhecido. O turismo responde atualmente por 10% a 15% do PIB de países como Itália, Espanha e França, o campeão do ranking. O governo de Emmanuel Macron, aliás, prepara uma campanha para estimular que o turista bote o pé na estrada fora da alta temporada e explore circuitos alternativos, como uma rota pela biodiversidade do país. Difícil será administrar a avidez dos forasteiros em admirar Paris lá de cima da Torre Eiffel em um radiante dia de verão.

Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860

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